DA REPORTAGEM LOCALO vírus da Aids começou a se espalhar entre seres humanos há bem mais tempo do que se imaginava até agora: em torno de um século atrás ele deixou as florestas da África central e começou a circular nas cidades que os colonizadores europeus construíam na região.
A nova estimativa foi possível graças à descoberta de exemplares do vírus preservados em uma amostra de 1960 de tecido humano preservada em um hospital de Kinshasa, capital da República Democrática do Congo. É a segunda amostra mais antiga do vírus -a outra, datada de 1959 e da mesma cidade, foi descrita em 1995.
A comparação das seqüências do material genético das duas permitiu calcular que um ancestral comum dos dois vírus já existia em torno de 1900.
As seqüências de DNA das amostras antigas, batizadas ZR59 e DRC60, diferem em 12%, o que indicaria um ancestral comum das duas meio século antes. O HIV evolui 1 milhão de vezes mais rápido que um animal, o que o torna um alvo difícil para a medicina.
O estudo foi feito por uma equipe de 12 cientistas, liderados por Michael Worobey, da Universidade do Arizona em Tucson, EUA, e publicado na edição de hoje da revista científica britânica “Nature”.
“A considerável distância genética entre DRC60 e ZR59 demonstra diretamente que a diversificação do HIV-1 no centro-oeste da África ocorreu bem antes da pandemia reconhecia de Aids”, escreveram Worobey e colegas.
O HIV-1 possui três linhagens básicas. Uma delas, conhecida como grupo M, é a causa de mais de 95% dos casos de Aids em todo o mundo, lembra Paul Sharp, da Universidade de Edimburgo, Reino Unido. Ele comenta a descoberta na mesma edição da revista.
“Conhecer a seqüência original, ancestral, do HIV-1 do grupo M e como ele evoluiu poderá ajudar os cientistas a desenvolver drogas e vacinas. Se você souber quais partes do genoma original do HIV-1 grupo M foram conservadas ao longo do tempo, esses genes podem codificar proteínas que são críticas à sobrevivência do HIV e improváveis de mudar muito no futuro”, disse à Folha a epidemiologista Rosemary McKaig, do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas dos EUA, que co-patrocinou a nova pesquisa.
Já Sharp é mais cético. “Conhecer a evolução do HIV-1 provê uma útil informação de fundo, mas pode não ter um impacto direto no desenvolvimento de drogas ou vacinas.”
“O estudo é muito importante porque mostra a evolução do vírus na circulação críptica [oculta] entre humanos”, diz o brasileiro Paolo Zanotto, especialista em evolução de vírus do Instituto de Ciências Biomédicas das USP. Ele lembra que o agente causador da doença precisa de uma fase de adaptação para passar do chimpanzé ao homem, quando ele passa a “testar” a malha de transmissão humana -e, eventualmente, criar uma epidemia.
No caso africano não há provas de como se deu a transmissão em maior escala no ser humano, mas os autores do estudo sugerem que isso tenha acontecido graças à urbanização. O vírus tenderia a se espalhar com o adensamento da população e a intensificação de comportamentos de risco.
“O relevante para nós no Brasil hoje é que o estudo mostra que um vírus pode estar circulando, apesar de ainda não estar causando uma epidemia”, diz Zanotto. O melhor exemplo, diz, é o subtipo 4 do vírus da dengue. Para ele, faz mais sentido agir antes nesses casos com medidas profiláticas do que “correr a reboque” da epidemia depois que ela começar.
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