Os obstáculos de rios e lagos, ainda hoje vencidos por rebanhos migratórios em determinadas regiões da África, foram transpostos por caçadores primitivos sobre troncos de árvores, as primeiras embarcações.
A perspectiva do vôo, no entanto, certamente foi vista sempre como a mais promissora. Mesmo barreiras como montanhas, áreas alagadiças e braços de mar seriam transpostas com facilidade. Mas, para elevarem-se no ar, os humanos deveriam esperar o fluxo do tempo, observar pacientemente o vôo de aves, insetos e morcegos e, como eles, ser capazes de abrir trilhas e rotas pela fina atmosfera da Terra.
Perspectiva Histórica
Evocar a perspectiva do vôo, além de localizar essa conquista como parte de um processo histórico, um avanço da ciência sustentado sobre os ombros de inúmeros homens, é também uma forma de evitar simplificações. O que não significa ignorar o talento de gênios, literalmente os homens que deram asas à imaginação.
O sóbrio, elegante, generoso e inventivo Santos Dumont construiu o primeiro avião da história e com ele voou – em 23 de outubro de 1906 – uma distância de 60 metros, a 3 metros de altura, mais baixo que um poste de iluminação pública. Pilotou a máquina que havia concebido para voar como um pássaro ruidoso, mas não fez um trabalho solitário. Seu 14-Bis teve os desafios de estrutura das asas resolvidos pela contribuição do australiano Lawrence Hargrave (1850-1915), conhecido pelas células-caixas capazes de garantir rigidez e estabilidade a essas estruturas.
E havia o motor, que Santos Dumont obteve de seu amigo, Léon Levavasseur (1863-1922), que, já em 1902, havia patenteado um motor de 8 cilindros. Na conquista do ar faz pleno sentido a observação do antropólogo, filósofo da ciência e escritor americano Loren Eiseley (1907-1977) sobre a impossibilidade de um único homem “contar toda a história”.
Santos Dumont iniciou seus vôos em balões, mas não foi o primeiro nem o último a recorrer aos aeróstatos para elevar-se do solo. E mesmo os primeiros balonistas não foram, rigorosamente, os pioneiros do ar. Quando voaram, tiveram a companhia de Ícaro e Dédalo, inventores mitológicos de asas construídas com penas para escapar do confinamento de Creta. Ícaro entusiasmou-se com o vôo e aproximou-se do Sol o suficiente para derreter a cera que prendia as penas de suas asas. Assim, mergulhou para a morte, metáfora dos primeiros tempos da aviação.
A história registra inúmeros casos de homens dispostos a voar e que para isso não hesitaram em arriscar a vida confiando na versão ingênua de movimentar braços alados pela força de seus próprios músculos. Milhares de outros, anônimos para sempre, fizeram a mesma tentativa frustrada. Saltos de pontes, edifícios e do topo de outras elevações que asas desajeitadas não permitiram o vôo de um pássaro ou de uma borboleta.
Entre os fracassados está o nono rei da Bretanha. Em 863 a.C., equipado com um par de asas inoperantes, o rei morreu ao saltar do alto do templo de Apolo, em Trinavantum, antigo nome de Londres. Em 1020, o monge, matemático e astrólogo Oliver de Malmesbury não perdeu a vida, mas quebrou as duas pernas numa frustrada tentativa de voar.
Previsão de Roger Bacon
Em 1250, Roger Bacon (1214-1292) conclui seu livro Secrets of art and Nature, onde faz a primeira referência registrada a um vôo mecânico. Filósofo e religioso franciscano, Roger Bacon justifica a alcunha de Doctor Mirabilis como precursor do moderno pensamento científico, defesa da matemática para a fundamentação da ciência e valorização precoce da experiência para o avanço do conhecimento.
Suspeito de pôr em xeque as concepções aristotélicas que governaram o Ocidente por quase 20 séculos, Bacon esteve encarcerado durante 15 anos, entre 1277 e 1292. Pagou caro por enxergar o futuro, quando seus contemporâneos mal distinguiam o presente.
Roger Bacon foi um antecipador dos vôos mecânicos, mas quem concebe as primeiras análises científicas para sustentar essas possibilidades é o versátil Leonardo da Vinci. Observou pássaros em vôo, analisou a aerodinâmica desses movimentos e previu que um dia os homens iriam voar como fazem os praticantes de asa-delta.
Acalentado havia muito, o sonho do vôo só tomaria forma no século XVIII, com contribuições de um brasileiro, o jesuíta Bartolomeu Lourenço de Gusmão (1685-1724). Conhecido como “O Padre Voador”, Bartolomeu de Gusmão fez sua primeira demonstração pública de um engenho voador, em 8 de agosto de 1709, no pátio da Casa da Índia, em Portugal. Diante do rei D. João V, seu balão movido a ar quente e por isso mais leve que o ar exterior, atingiu a altura de cerca de 4 metros e deslocou-se em diferentes direções para surpresa dos observadores.
Intolerância da Fé
Em 7 de abril de 1707 Bartolomeu de Gusmão já havia surpreendido com a invenção de uma bomba hidráulica para esgotar os porões de navios. Dois anos depois, em 17 de abril de 1709, pede autorização para voar com o Passarola, como batizou seu balão de ar quente. A aeronave deveria ter porte suficiente para cumprir esta missão. A permissão veio logo, mas os recursos para viabilizar a idéia nunca chegaram. Como Roger Bacon, Bartolomeu de Gusmão também foi perseguido religioso. A falta de recursos combinada ao cerceamento de liberdade em curto espaço de tempo levou suas idéias para o esquecimento.
Bartolomeu de Gusmão morreu jovem, aos 39 anos, mas sua descoberta do ar quente como fonte promissora de ascensão para balões sobreviveu para permitir o primeiro vôo tripulado. Os irmãos Étienne e Joseph Montgolfier, nascidos na cidade de Annonay, sul da França, retomaram este princípio e fizeram do 4 de junho de 1783 a data que marca a Idade do Vôo. No entanto, o episódio ainda tem controvérsias não resolvidas.
Uma versão assegura que Étienne e Joseph brincavam com um saco de papel aberto, com a boca voltada para uma fogueira, o que fez com que flutuasse e atraísse a atenção para a perspectiva do vôo. Outra abordagem, com sustentação na imprensa francesa do início do século, caso da revista L’Aeron, garante que os irmãos apossaram-se, sem dar crédito, das idéias do padre brasileiro. Ao fugir para a Espanha, “O Padre Voador” teria deixado seus planos com o irmão, Alexandre de Gusmão, secretário de D. João V. Em Paris, Alexandre fez contatos com pessoas relacionadas a Montgolfier pai, um tradicional fabricante de papel, daí os planos terem chegado às mãos dos irmãos.
A Glória dos Montgolfier
Inquestionável é que em 5 de junho de 1783 os Montgolfier exibiram publicamente um balão com 32 metros de circunferência, construído em linho e inflado com ar quente a partir de uma fogueira alimentada por palha seca. O balão elevou-se a 300 metros e deslocou-se por 3 km, numa viagem de dez minutos.
Em 19 de setembro de 1783 os irmãos fizeram voar o Réveillon levando a bordo três passageiros incapazes de relatar a experiência: um pato, um galo e um carneiro. No início da era espacial, com as primeiras naves em órbita, cães e chimpanzés também substituíram seres humanos como cobaias. No caso dos passageiros do Réveillon, havia o temor de que não sobrevivessem sem contato com seu elemento natural, a superfície da Terra.
Enquanto os Montgolfier embarcam animais em balões de ar quente, o físico também francês Jacques Alexander César Charles (1746-1823) utiliza hidrogênio, recém-descoberto, para inflar e fazer ascender um balão. O aeróstato de Charles sobe em 27 de agosto de 1783. Mas o primeiro vôo tripulado por humanos é feito com balões tradicionais de ar quente e leva dois passageiros: Pilâtre de Rozier e o marquês d’Arlandes. Quando Santos Dumont voou pela primeira vez em um balão, em 23 de março de 1898, esses equipamentos já estavam consagrados pela diversidade de uso.
Em 22 de outubro de 1797, o francês André Jacques Garnerin faz o primeiro salto de pára-quedas do cesto de um balão, a 975 metros de altitude. Foguetes já haviam sido lançados pelos ingleses sobre Copenhague em 1807 e em 1852 o também francês Henri Giffard havia dirigido com alguma dificuldade um balão alongado usando motor a vapor. Dez anos depois, o balão Intrepid, a hidrogênio, é utilizado em observações militares na guerra civil americana. Na guerra do Paraguai, o Brasil usa balões para observações entre 1870/76. E, em 1897, três exploradores suecos tentaram conquistar o Pólo Norte pelo ar.
Ensaios de Lilienthal
Entre 1890/96 os vôos planados ensaiam os primeiros movimentos com o alemão Otto Lilienthal (1848-1896). Ele investigou a sustentação das asas e a estabilidade desses equipamentos e publicou os resultados no livro O vôo dos pássaros como base da arte de voar.
Em 1894 Lilienthal desenvolve asas mecânicas com aparência de um desajeitado morcego, acionadas por um pequeno motor, numa tentativa frustrada de voar. Pouco antes, o brasileiro Júlio Cezar Ribeiro de Souza (1843-1887) havia feito experiências bem-sucedidas com um balão fusiforme, com encomendas na mesma Casa Lachambre que atenderia Santos Dumont. Sem ajuda oficial, lamentou ter tido as idéias roubadas na França e deixou, num curto relato, o resumo de suas decepções: “O mundo inteiro está impressionado pelos felizes plagiários do meu invento para quem chovem milhões para balões colossais do meu sistema, enquanto só tive migalhas no país dos grandes esbanjamentos, onde a ciência está completamente mistificada”.
O primeiro vôo custou a Santos Dumont 400 francos. De volta à terra, ele confessou que nunca se esqueceria “do genuíno prazer de minha primeira ascensão”. Leitor de Júlio Verne, apaixonado pela mecânica que havia conhecido na fazenda de café paterna, em Ribeirão Preto, equipada com estrada de ferro, a experiência inicial cativa Santos Dumont para o vôo.
Às vésperas do século XX a iluminação elétrica afugenta as sombras da noite e Paris justifica o título de “Cidade Luz”. Em 1898 Santos Dumont apresenta à Lachambre & Machuron, em Paris, um balão esférico e de pequeno porte que utiliza hidrogênio para ascensão. Na aeronave, batizada de Brasil, tudo é leve: seda japonesa, cesto de vime, a rede de 3,5 kg, e o corpo do inventor “51 kg sem sapatos, calçando luvas”.
Por essa época, SCIENTIFIC AMERICAN, concebida em 1845 como publicação voltada para a proteção de patentes, acompanha atentamente os acontecimentos no ar. Em 1908 a revista ofereceria um prêmio que leva seu nome ao aviador americano Glenn Curtis (1878-1930) por ter coberto em vôo uma distância de 1,6 km com o seu June Bug. Santos Dumont seria assunto constante em suas páginas, a cada uma das constantes evoluções de suas máquinas de voar.
O Vôo de Santos Dumont
Em 4 de julho Santos Dumont faz o primeiro vôo com o Brasil e, em seguida, constrói um segundo modelo, o L’Amérique. Os experimentos com planadores desenvolvidos por Lilienthal, na interpretação de Santos Dumont, apontam para a necessidade de dirigibilidade do único veículo que até então voa de fato. E é disso que ele irá ocupar-se. As tentativas de dirigibilidade para balões acumulam fracassos, com motores elétricos leves, mas inconvenientes pela exigência de baterias. Ou pesados engenhos a vapor, mais indicados para locomotivas.
A solução de Santos Dumont é um balão em forma de charuto e equipado com motor a combustão e canos de exaustão voltados para o solo, evitando a proximidade com o hidrogênio inflamável.
O dirigível no 1 voa em 18 de setembro de 1898 e tem queda provocada pelo mau funcionamento de uma válvula interna para garantir pressão constante do gás. Em maio de 1899, o no 2 já estava pronto para voar, com a dificuldade da válvula resolvida. Mas nessa data é o tempo ruim, não a válvula, a razão da frustração.
O dirigível no 3 voa em 13 de novembro de 1899 com modificações. O hidrogênio foi substituído por gás de iluminação, menos inflamável, com volume quase cinco vezes superior ao do no 1. “Foi a ascensão mais feliz que fiz até esta data”, comemora Santos Dumont após o vôo inaugural, seguido por outros sobre os telhados de Paris. Para não desperdiçar gás nem trabalho, Santos Dumont constrói um hangar no terreno do recém-fundado Aeroclube da França. O zumbido mecânico do seu novo engenho é incorporado à sonoridade de Paris e as formas alongadas do balão integram-se ao céu da cidade.
Santos Dumont faz aperfeiçoamentos ao final de cada vôo e em 1900 decola com o no 4, novamente preenchido com hidrogênio e com motor de 7 cavalos instalado na proa. Voa montado num selim. O vôo impressiona, entre outros, o astrônomo e inventor americano Samuel Pierpont Langley (1834-1906). Mas os testes em terra, com o vento frio da hélice, afetam a saúde de Santos Dumont e ele é obrigado a suspender temporariamente o trabalho. Ao menos o trabalho físico, porque sua imaginação não pára. No intervalo para tratamento, decide utilizar cordas de piano em substituição aos cabos pesados para prender o cesto ao balão.
O Prêmio de La Meurthe
O petróleo entra em cena como matéria-prima estratégica, fonte de energia aos motores de combustão que se propagavam. Deutsch de La Meurthe, uma das fortunas nessa área, estabelece um prêmio para quem for capaz de contornar a Torre Eiffel, saindo da localidade de Saint-Cloud e retornando ao ponto de partida no tempo de 30 minutos.
Santos Dumont avalia a dificuldade do desafio, mas está disposto a conquistar o prêmio. Para isso desenvolve o esguio no 5, que decola experimentalmente em 12 de julho de 1901. Com motor de 4 cilindros e 12 cavalos ele rapidamente conquista a confiança do público. Mas, em 8 de agosto, com a presença da comissão do Aeroclube o no 5 sobe e, ao contornar a torre, entra em pane e faz o pouso mais acidentado até então. O balão em queda e perdendo gás, explode a 32 metros de altura e o que sobrou dele está enganchado no edifício do Hotel Trocadéro, com Santos Dumont suspenso a 15 metros de altura.
Quando os bombeiros chegam, Santos Dumont já havia escapado, agarrado a uma corda lançada do topo do edifício. Na noite do mesmo dia, ele anuncia que construiria um novo balão para retomar o vôo em 22 dias.
No prazo previsto o no 6 está em condições de voar, mas novamente Santos Dumont tem dificuldades, como um pouso forçado sobre as árvores do Bois de Boulogne. Mas em 19 de outubro de 1901 balão e piloto estão prontos para a batalha final. Santos Dumont decola às 14h42 de Saint-Cloud e na presença da comissão do Aeroclube enfrenta tanto a dificuldade de ventos contrários como uma pane temporária do motor. Quando sobrevoa a pista de corrida de d’Auteuil, pode ouvir os aplausos da multidão que o segue.
Gritos de alarme e temor ainda ecoam pelo trajeto, enquanto o balão sobe abrupto ou inclina-se para baixo, conseqüência do mau funcionamento do motor. Mas o trajeto é cumprido, a não ser por um atraso de 30 segundos no retorno, o que motiva discussões entre os membros da comissão. Como havia anunciado, Santos Dumont abre mão dos 100 mil francos “em benefício dos pobres de Paris e dos homens que me ajudaram”. A recusa ao prêmio impressiona o público, mas só em 4 de novembro a comissão do Aeroclube reconhece a conquista oficialmente.
Perdas Pessoais
A resistência da comissão do Aeroclube decepciona Santos Dumont, que pede afastamento da entidade. É o início de um período de dificuldades e desapontamentos. Santos Dumont viaja para os Estados Unidos, encontra-se com Thomas Edison e com o presidente Theodore Roosevelt.
Mas de volta à França, vê seu amigo, Augusto Severo, morrer com a explosão do seu Pax. Severo, deputado brasileiro, era entusiasta do vôo e um dos maiores incentivadores de Santos Dumont. Em 22 de junho outra notícia trágica: a mãe de Santos Dumont suicida-se em Lisboa.
Nova viagem aos Estados Unidos, agora com o no 7, mas o balão chega ao destino destruído, supostamente por sabotagem. Santos Dumont afasta-se da imprensa e, recluso, desenvolve o no 9, que vende nos Estados Unidos. Por algum tempo os balões 7, 9 e 10 dividem espaço em seu abrigo para aeronaves em Neuilly-Saint James. O primeiro é um balão de corrida, o segundo um modelo compacto e ágil e o terceiro uma versão para passageiros.
O no 9 é um enorme sucesso. A edição de setembro de 1902 de SCIENTIFIC AMERICAN, em meio a novos modelos de gramofones e um exótico modelo de violino, abre fotos generosas do modelo ainda em construção.
Santos Dumont voa com o Balladeuse, como o no 9 é conhecido, em 23 de junho de 1903 e deixa suas impressões: “Levantei-me às duas horas… A noite estava escura e os mecânicos dormiam… Pude erguer o vôo, franquear o muro e transpor o rio antes que o dia clareasse… Quando encontrava árvores, ‘saltava’ sobre elas… Atingi a Porta Dauphine e a entrada da grande Avenida Bois de Boulogne que conduz ao Arco do Triunfo, encontro das elegâncias de Paris, e então decidi lançar o cabo pendente sobre a Avenida… Tive de descer tão baixo quanto o nível dos telhados… A isto eu chamo de navegação prática… Fiz o cabo pender sobre a avenida… Assim, algum dia, os exploradores farão sobre o Pólo Norte… Não se deve descer sobre o Pólo Norte logo na primeira investida; mas que se faça um vôo circular para registrar observações e estar de volta à hora de sentar-se à mesa…”
Ao final do vôo, Santos Dumont estaciona o Balladeuse em frente a seu apartamento, nos Champs Elysées e, sob o aplauso de uma multidão, toma o café da manhã. Na noite seguinte voa com um potente farol e, em 26 de junho de 1903, leva um passageiro, um garoto de 7 anos. Em seguida, ao final de três lições, quem pilota o no 9 é a bela cubana Aída d’Acosta, primeira mulher aeronauta da história. Em 11 de julho Santos Dumont vai almoçar no La Cascade a bordo do Balladeuse. Encontra oficiais do exército francês que ficam fascinados com a docilidade de manobras da aeronave.
O Vôo dos Irmãos Wright
Em dezembro de 1903 chegam a Paris rumores de que os irmãos Wright haviam feito um vôo com o mais pesado que o ar nos Estados Unidos, no dia 17 daquele mês. Em outubro desse ano Langley havia tentado um vôo catapultado, mas caiu no rio Potomac, em Washington. Dois meses depois, sob o comando de Charles Manly, assistente de Langley, outra tentativa novamente termina no rio.
Os irmãos Wright tentaram um vôo sobre trilhos, em 14 de dezembro de 1903, com um aeroplano semelhante a um planador, mas equipado com motor de 12 cavalos, sem sucesso. A experiência de 17 de dezembro foi feita na praia de Kill Devil Hills, em Kitty Hank, na Carolina do Norte, mas toda documentação envolvendo o vôo, até 1908, não passou de um telegrama, sem nenhuma fotografia, além do relato de cinco observadores ocasionais, homens que ajudaram a colocar o aparelho nos trilhos, sob o vento intenso e contínuo da costa.
Essas condições, incluindo vento suficiente para levantar um planador, não atendem os requisitos exigidos para um vôo completo, com decolagem e pouso autônomos. Santos Dumont não se abala e, sem a companhia do amigo Lachambre, morto em janeiro de 1904, continua freqüentador do Maxim’s e dos anúncios que o retratam com a elegância dos ternos riscados e do chapéu de aba caída. Em 1904 ele é homenageado com a Ordem de Cavalheiro da Legião de Honra da França, pensa num modelo de helicóptero e, no ano seguinte, segue o vôo de seu amigo Gabriel Voisin com um planador rebocado por lancha.
Em fins de 1905, com a notícia de que os irmãos Wright haviam voado uma distância de 39 km, Deutsch de La Meurthe anuncia um novo prêmio: 50 mil francos a quem demonstrar um vôo em circuito fechado, não de 39 km, medida anunciada pelos irmãos Wright, mas de um único quilômetro.
Os irmãos Wright não respondem ao desafio. Os franceses desconfiam que a razão disso foi que o vôo deles não atendeu às exigências formais como decolagem independente de catapultas.
Santos Dumont trabalha na concepção do helicóptero e inicia a construção de um modelo, além de esboçar um monoplano equipado com um único motor e duas hélices, influenciado pelo trabalho de lorde Cayley no início do século anterior. Lorde Cayley, como reconheceu Wilbur Wright em 1909, fez pesquisas básicas para um aparelho mais pesado que o ar, com estudo de asas, leme e hélice. Chegou a criar um pequeno planador que em 1853 ensaiou um vôo tripulado por seu cocheiro.
O Vôo Acoplado do 14-Bis
Santos Dumont trabalha no no 13, uma mistura de ar quente e hidrogênio perdido em fins de 1904. Mas o no 14 volta a surpreender em demonstrações em agosto de 1905 na costa do canal da Mancha. Esse modelo é modificado em seguida e irá sustentar uma aeronave mais pesada que o ar, daí o nome da famosa aeronave, 14-Bis. Com esse sistema duplo são feitas experiências de estabilidade no ar.
Os testes começam em 19 de julho de 1906 e estendem-se com a aeronave presa a um cabo e puxada por um jumento. Em 21 de agosto são feitos testes com a hélice e em movimento e, em 3 de setembro, o motor de 25 cavalos é substituído por outro com o dobro de potência.
A perspectiva do mais pesado que o ar é uma realidade próxima e a França já oferecia dois prêmios para essa realização, desde que decolando e pousando com meios próprios. Um para quem cobrir uma distância de 25 metros. Outro, do Aeroclube da França, para quem superar os 100 metros, ambos sob supervisão de uma comissão de especialistas.
Santos Dumont é um dos vários candidatos: Louis Blériot, Gabriel Voisin, Louis Ferdinand Ferber e o romeno Trajan Vuia. Todos sonham com a conquista.
Em 13 de setembro, na fase de preparativos, o 14-Bis dá um vôo/salto de 7 metros, o bastante para surpreender os competidores. Em 12 de novembro Blériot faz uma tentativa fracassada e, em 23 de outubro, Santos Dumont faz um vôo de 60 metros e conquista a Taça Archdeacon. Pouco depois, em 12 de novembro de 1906 o 14-Bis faz o primeiro vôo registrado da história. Percorre 220 metros a uma altura de 6 metros, e conquista o prêmio do Aeroclube da França.
Wilbur Wright viu uma foto do 14-Bis e observou numa carta a Ferber que uma catapulta poderia aliviá-lo do peso das rodas de decolagem, oferecendo-se para uma exibição aos franceses mediante US$ 50 mil pagos em moeda.
A Versatilidade do Demoiselle
Santos Dumont ainda trabalha numa versão modificada do 14-Bis, o 15-Bis que não evolui e então dedica-se ao projeto mais sedutor, o “Demoiselle”, invento de número 19, apresentado em novembro de 1907.
No Demoiselle avião e piloto fundem-se num sistema único. Com motor de cilindros opostos de 25 cavalos, é simples, seguro e barato. Além disso, ao contrário dos irmãos Wright, Santos Dumont colocou seu projeto à disposição de quem estivesse interessado em construí-lo.
Em 1909 o Demoiselle é destaque da Primeira Exposição Aeronáutica em Paris, quando começa a ser copiado por outros inventores e produzido em série pelas indústrias Clement Bayard e L.Dutheil & Chalmers. Esse modelo iniciará muitos dos interessados no vôo, entre eles Roland Garros, mais tarde um conhecido piloto de automóveis.
Em 8 de agosto de 1908, quando Wilbur Wright visita a França ainda decolando com catapulta, o avião já integra a paisagem urbana e inúmeras conquistas haviam sido feitas. Santos Dumont previu o uso de aviões para transporte de passageiros, ligando cidades e continentes, mas antes que isso pudesse ser realidade, o avião transformou-se em arma, durante a Primeira Guerra Mundial.
Ao final do confronto, a oferta de aviões e pilotos estimula os correios aéreos e um incipiente transporte de passageiros. Na Segunda Guerra Mundial o avião passa de recurso tático a arma estratégica e a tripulação de um B-29, o “Enola Gay” atira sobre o Japão a primeira bomba atômica, em agosto de 1945. Pouco depois, “Chuck” Yager quebra a barreira do som com o pequeno X-1. Então, os jatos comerciais cada vez maiores transportam um número crescente de passageiros, confirmando a previsão de Santos Dumont, posta em dúvida por muitos de seus contemporâneos.
Durante a Segunda Guerra Mundial os alemães desenvolvem versões com turbinas a jato que só atuaram no final do conflito, além das bombas voadoras V-2, ancestrais dos foguetes para exploração espacial. Os foguetes, criação originalmente militar, acabarão materializando a previsão do pai da astronáutica, o russo Konstantin Tsiolkovski, para quem “a Terra é o berço da humanidade, mas ninguém pode viver eternamente no berço”.
Para conhecer Mais
- Santos Dumont e a Invenção do vôo. Henrique Lins de Barros. Jorge Zahar Editor, 2003.
- Conexão Wright-Santos Dumont, a verdadeira história da invenção do avião. Salvador Nogueira. Record, 2006.
- O que eu vi, o que nós veremos. Alberto Santos Dumont. Edição do autor, 1918.
- Eu naveguei pelo ar. João Luiz Musa e Marcelo Breda Mourão. Nova Fronteira, 2001.
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