Estudo foi motivado após contato do professor com paciente com síndrome mielodisplásica que fazia banho de lua semanalmente. Ela, que faleceu pouco depois, não tinha casos de câncer na família.
Uma pesquisa realizada no mestrado do Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas da Universidade Federal do Ceará (UFC) faz um alerta importante a todas as pessoas que costumam realizar banho de lua, tratamento estético de clareamento dos pelos.
O trabalho apontou fortes indícios de que a solução utilizada no procedimento – peróxido de hidrogênio (água oxigenada) e amônia – é fator de risco para o desenvolvimento de câncer de medula (leucemia) e de síndrome mielodisplásica (SMD), distúrbio relacionado à produção de células sanguíneas.
“Alguns estudos já indicavam uma possível associação entre o uso dessas substâncias com câncer de medula óssea. Agora, nosso trabalho trouxe mais indícios de que a combinação peróxido de hidrogênio e amônia pode ser fator de risco para o câncer”, diz a pesquisadora Letícia Rodrigues, responsável pelo trabalho.
Os estudos a que ela se refere são trabalhos epidemiológicos, a partir de estatísticas entre populações. Já o trabalho realizado por Letícia é de natureza pré-clínica, feito com animais (no caso, ratos), e avaliou o impacto das substâncias tanto nas células da medula dos animais como nos seus genes.
“Sem dúvida nenhuma, temos um alerta para a comunidade científica. São indícios fortes de que o banho de lua pode induzir alterações no DNA e na medula óssea, o que pode levar a uma leucemia aguda”, diz o orientador do trabalho Prof. Ronald Feitosa, da Faculdade de Medicina da UFC, e pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Atualmente, o banho de lua conta com autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Os dois pesquisadores são unânimes em afirmar que isso não quer dizer que necessariamente uma pessoa que fez uso do banho de lua desenvolverá câncer. A pesquisa, contudo, não avaliou a frequência permitida nem a dose segura. “Então, recomendamos o uso mínimo possível. Como a gente trabalha com prevenção, indicamos que, de preferência, é melhor nem usar o banho de lua ou outros procedimentos que utilizem essas substâncias químicas, como a tintura”, diz Letícia.
O banho de lua é aplicado de diversas maneiras. Há quem use a solução sobre a pele dentro do banheiro ou em clínicas de estética, ou seja, em ambientes fechados; já há quem prefira aplicá-la sob o sol, em praias ou em lajes.
Letícia reforça que o uso do banho de lua é potencialmente prejudicial em qualquer uma das referidas situações, pois o fator de risco é a própria exposição da solução sobre a pele.
Contudo, tanto a inalação do produto em ambientes fechados como sua aplicação em exposição ao sol – responsável pela emissão de raios ultravioletas (que podem causar câncer) – podem funcionar como fatores agravantes.
“Ainda não há, entretanto, estudos conclusivos que tenham realizado essa comparação entre os riscos do uso da solução em ambientes fechados e em contato com os raios solares. É algo que ainda precisa ser analisado cientificamente”, pondera a pesquisadora.
O experimento
A história da pesquisa começa em 2019, quando o prof. Ronald teve contato com uma paciente de 22 anos com SMD hipoplásica, cuja medula não conseguia mais produzir células sanguíneas, e que não tinha nenhum caso de câncer na família.
A jovem faleceu pouco tempo depois, deixando um filho de seis meses. Além do terrível drama humano, a história chamou a atenção dos pesquisadores para um fator externo: a paciente havia relatado que fazia banho de lua semanalmente, por períodos de até quatro horas.
Haveria uma ligação entre os fatos? A pergunta fez com que Ronald começasse a montar um grande banco de dados sobre fatores de exposição ambiental dos pacientes com suspeita de câncer e, com isso, começasse a fazer correlação entre uso de produtos químicos e o desenvolvimento de cânceres de medula.
“No caso do banho de lua, resolvemos tentar reproduzir a situação em modelos murinos (ratinhos), expondo um grupo ao banho de lua, com um grupo de controle que passava pelo mesmo procedimento, mas era exposto apenas à água. E encontramos sinais sugestivos, bastante intrigantes”, relata o Prof. Ronald.
Para avaliar a hipótese, Letícia realizou experimentos com 70 camundongos, divididos entre os que receberam os seguintes produtos: água (grupo controle); água oxigenada em 40 volumes (a mais concentrada); mistura de água oxigenada e amônia, substâncias que são utilizadas no banho de lua. Todos passaram por raspagem dos pelos antes de receber o produto na pele.
Os camundongos foram submetidos a esse experimento duas vezes por semana, em 20 sessões. Eles ficavam em uma caixa de madeira, simulando o momento em que os humanos ficam no banheiro. Ao final, passaram por um teste conhecido como RT PCR e tiveram suas medulas ósseas, as estruturas que produzem o sangue, analisadas em microscópio.
Dos 14 animais submetidos ao banho de lua, as células das medulas de dois deles apresentavam megacariócitos agrupados, uma estrutura comum em pacientes com leucemia. Ambos eram machos. No caso dos camundongos submetidos apenas à água oxigenada, uma fêmea também apresentava a mesma estrutura, típica de pacientes com câncer.
Ou seja, 20% dos animais que passaram pelo procedimento com substâncias do banho de lua apresentaram alterações relacionadas ao câncer. Já os que receberam apenas água estavam com medulas sadias.
A Genética por trás da pesquisa
A suspeita dos pesquisadores é que, em contato com o corpo humano, essas substâncias químicas provoquem dano. “A água oxigenada, por exemplo, é o peróxido de hidrogênio misturado com água. Esse composto é uma espécie reativa de oxigênio”, explica Letícia Rodrigues. “Quando ele está no nosso corpo, ele pode liberar radicais livres que vão interagir com nosso DNA, causando possivelmente danos oxidativos e lesões”, completa.
Esses danos fazem com que pedaços lesionados de DNA, que deveriam ficar no núcleo da célula, saiam para o citoplasma, a membrana que reveste o núcleo. A partir desse momento, ocorre o que os cientistas chamam de via do STING: um gene entende que aquilo é um corpo estranho e aciona uma proteína como resposta àquele corpo.
Em vez de apenas corrigir o problema, esse gene acaba acionando outro gene, que aciona outro gene e assim por diante, em uma cascata de respostas imunológicas muito além do que seria necessário. É essa cascata descontrolada que acaba provocando dano à célula, em um processo parecido com o que ocorre em doenças autoimunes. No caso específico dessas substâncias pesquisadas, o resultado é um eventual câncer.
A hipótese foi testada durante o experimento. No RT PCR, os pesquisadores avaliaram como estavam os genes acionados pela via do STING. Descobriram que nos ratos machos, eles estavam mais ativos quando era aplicada a amônia, e nas fêmeas, quando aplicada a água oxigenada, o que reforça os indícios de que essas substâncias realmente ativam a via do STING.
Agora, os pesquisadores devem aprofundar os estudos sobre esses impactos no projeto de doutorado já iniciado por Letícia Rodrigues também no Programa de Pós-Graduação em Ciências Médicas da UFC.
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