Clorofórmio e religião

Sir James Young Simpson, baronete (1811-1870), sétimo filho de um padeiro, Professor de Parteiras, acconcheur do comércio de carruagens, Médico da Rainha Vitória, santificado por uma capela particular construída na sua casa quadrada de granito que dava para o Firth of Forth, atraía para os hotéis locais Uma clientela de 80.000 libras por ano. Ele era um Festival de Edimburgo em todos os dias do ano.

No dia 4 de novembro de 1847, depois do jantar, Sir James e seus dois jovens assistentes da Enfermaria Real de Edimburgo tomaram clorofórmio, ao invés de vinho do porto. Inalando o bouquet, os dois jovens médicos começaram a dar gargalhadas, a gritar e tentaram atirar cadeiras e a mesa pela janela, depois deslizaram para o chão e adormeceram. “Muito mais forte do que o éter, observou o corpulento professor, adormecendo também ao lado deles.

A abençoada lua-de-mel do éter tinha acabado. O cheiro desagradável, a irritação dos pulmões, as crises de vômito dos pacientes, a necessidade das máscaras desajeitadas de vidro e uma quantidade enorme do anestésico levaram os médicos à procura de outras varinhas mágicas para a anestesia. O clorofórmio era rápido. A inconsciência era imediata, e não gradual. Cheirava bem, e seu efeito era mais duradouro, mais forte, era mais barato e de administração mais simples. Bastava uma borrifada num gorro de dormir ou numa luva, ou uma esponja embebida no anestésico, e podiam cortar qualquer coisa. Meia colher de chá de clorofórmio, num lenço dobrado sobre o nariz, exorcizavam as dores do parto que atormentavam as mulheres desde Eva e escandalizaram o clero (masculino) da Escócia.

“Entre dores darás a luz teus filhos”, ordenava o Gênesis. “Privar os ouvidos de Deus dos gritos profundos e angustiados” da mãe em trabalho de parto, pregavam eles, é garantir que ela jamais amará o filho pelo qual jamais sofreu. Ah, sim, dizia Simpson, igualmente piedoso (que tinha duas Bíblias da família na sua sala de jantar). Mas a frase seguinte manda o homem ganhar com sofrimento o pão de cada dia, porém não estavam todos se deliciando com suas tortas de miúdos e purê de batatas?

Os religiosos discutiram sobre a tradução da palavra “sofrimento”. Ele os corrigiu: “Não significa a sensação de dor, mas o grande esforço muscular em que consiste o trabalho de parto, sendo o útero mais poderoso e os obstáculos mecânicos muito mais numerosos do que os que tem de suportar, por exemplo, a vaca doméstica”. o exemplo da vaca não adiantou. Aquelas pessoas ameaçadoramente virtuosas e perigosamente bem-intencionadas (que estão sempre ao nosso lado) continuaram a dissentir até 7de abril de 1853, quando John Snow (1813-1858) administrou clorofórmio a la reine, à rainha Vitoria, para o parto sem dor do Príncipe Leopold, concedendo respeitabilidade ao Gênesis.

Como Jackson, em Boston, roubou de Morton o crédito pela descoberta do éter, assim também um cirurgião escocês virou químico, calvo, de barba espessa. David Waldie (1813-1889), estendeu a mão para as honras conferidas a Sir James Simpson. O clorofórmio é composto pouco sofisticado: CHCl3, tão simples quanto o eter (C2H5)2O e mais simples do que o simples C2H5OH, da universal alegria engarrafada do homem, o álcool. O clorofórmio foi preparado em 1831 independentemente em Paris, Alemanha e no Estado de Nova York. Foi experimentado como anestésico, em animais, pelo fisiólogo francês Pierre-Jean-Marie Hourens (1794-1867), que descobriu o centro regulador da respiração no cérebro nove meses antes de Simpson experimentar nele mesmo. Já havia embriagado muita gente em Nova York.

Waldie foi quem primeiro falou sobre o clorofórmio com Simpson, na Sociedade Médico-Cirúrgica de Edimburgo, em outubro de 1847. Waldie trabalhava para a Companhia de Apotecários em Liverpool, e havia visto a fórmula no Dispensatório dos Estados Unidos, para atender ao pedido de um médico local que estava tentando fazer soltar o catarro de Liverpool com outa coisa que não o éter. Waldie prometeu a Simpson uma amostra, mas quando chegou em casa encontrou seu laboratório destruído pelo fogo. Quando Simpson proclamou o clorofórmio para o mundo (comprado em Duncan e Hockhart, ao lado da Princess Street), uma semana depois do seu jantar com anestésico, Waldie viu-se reduzido a uma insignificante nota de rodapé.

O ressentimento sobreviveu detrator. “Ele ficou com uma parte maior na introdução do clorofórmio do que a do Dr. Jackson na introdução do éter”, declarou John Snow – um elogio tremendamente precário. Waldie morreu ainda zangado, mas rico, em Calcutá, depois que seu Linlithgow nativo pôs as coisas no devido lugar com uma placa que diz: “A ele pertence a distinção de ter sido primeiro a recomendar e tornar praticável o uso do clorofórmio para aliviar o sofrimento humano”.

Também estavam ressentidos 117 quilômetros ao sul, em Dumfries. A amputação da perna direita do garçom de 36 anos, Harley Street, por Robert Liston, no University College Hospital, teve grande publicidade em Londres. Porém, no sábado anterior fora realizada discretamente a primeira operação com anestesia da Europa, na Enfermaria Real de Dumries e Galoway, realizada por William Fraser (1819-1863), cirurgião a bordo do Acadia, que chegou ao porto de Liverpool as 9:15 da manha, três dias antes, trazendo a boa notícia sobre o desempenho de Morton, vinda de Boston, via Halifax. Talvez todos eles merecessem o conselho amistoso de Simpson: Jamais guarde ressentimento. É tão desconfortável quanto uma bolsa de água quente, fria.”

O clorofórmio logo substituiu o éter em toda parte. Contudo, certos sádicos desavisados persistiam em aprovar as palavras de Florence Nightingale: “O ardor do bisturi é um poderoso estimulante, e é melhor ouvir um homem gritando com toda a força do que vê-lo mergulhar silenciosamente para o túmulo”, ordenava Sir John Hall (1795-1866), principal oficial médico na Crimeia.

WE Henley faz a apreciação, na década de 1870:

“Vejam-me esperando – esperando a faca

Mais um pouco e num instante vou saltar com a tempestade

O espesso, doce mistério do clorofórmio

A embriaguez escura, como morte-em-vida.”

E sua utilidade nas duas extremidades da operação é indicada por George Bernard Shaw, em 1906:

“O clorofórmio fez muitas diabriras. Permitiu que qualquer tolo se tornasse cirurgião.”

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