Corpo e alma

Nosso corpo é o mesmo velho corpo do homem primitivo. É sujeito às mesmas velhas doenças. Nossos crânios são ainda os mesmos nos quais os artigos bem – intencionados, com uma lógica dolorosa, faziam buracos para aliviar dores de cabeça ou libertar os demônios da loucura. As múmias sofreram de apendicite, artrite e dentes estragados. Para mumificar, insere-se um gancho no nariz para retirar o cérebro, abrem-se os flancos e rega-se com especiarias e sal durante 70 dias. Até os dinossauros tinham problemas de coluna.

Os cadáveres eram a terra comum na qual a medicina pastava e engordava. O material era filantropicamente fornecido por criminosos, para os quais a dissecação sangrenta assustava mais do que a ameaça da forca. Quando o estoque ficava baixo, em Edimburgo, para o cintilante professor Robert Knox (1791-1862), Burke e Hare sempre podia me desenterrar alguém para ajudar. O problema desses dois homens era a preguiça. Para não ter de acompanhar enterros, evitar cautelosamente os parentes do morto e cavar no escuro, com pás de madeira para não fazer ruído, eles embriagavam corpos vivos com whisky, estrangulavam e os vendiam por 7,10 libras cada um. Era enorme o número de “ressurrescionistas”, até que a Lei Britânica da Anatomia, em 1832, substituiu o preenchimento de um formulário por voluntários visionários. Houve um grande debate em Montreal, em 1875, quando o tifo dizimou os ocupantes de uma escola/convento, e as freiras e crianças foram roubadas antes que os pais americanos chegassem para levar os coros para casa.

Os anatomistas gravaram seus nomes em nós, com o mesmo amor que os namorados gravam seus nomes nas árvores. Nós abrigamos as criptas de Lieberkühn no envoltório dos intestinos. O círculo de Willis, que é a junção das artérias na base do crânio. A ampola de Vater, que guarda a extremidade do duto biliar. O forame de Wilson, uma abertura no peritônio, abaixo do fígado. A fossa de Rolando, no cérebro, a bainha de Schwann, nos nervos. O saco de Douglas, atrás do útero, o canal de Alcock, na pélvis (“não na vagina”, zombam os estudante de medicina). O nervo de Bell, no peito, o músculo de Santorini, na face, o ligamento de Poupart, na virilha, o triângulo de Scarpa, na coxa… Você encontra, dá nome à descoberta. Esse egoísmo exuberante fez de nós gloriosos Panteões ambulantes para os maiores médicos de cinco séculos. E por que não?

Nesse meio tempo os médicos fizeram a vontade da igreja, procurando a alma, porém nem Sir Thomas Brown, da universidades de Oxford, Montpellier, Pádua e Leyden, conseguiu encontrá-la. René Descartes (1596-1660), que promoveu l’homme-machine (o homem era um deux-chevaux, Deus, seu criador, com o Espírito Santo no tanque), descobriu a alma na glândula pineal, uma gotícula atrás do principal ventrículo do cérebro. Ninguém sabe o que faz a glândula pineal, mas nos faz mais felizes à luz clara do sol, portanto talvez ele estivesse certo.

Willian Harvey escreveu em Exercitatio Anatomica de Motu Cortis et Sanguinis in Animalibus:

É possível que o movimento do sangue no corpo se processe desse modo. Todas as partes devem ser alimentadas, aquecidas e ativadas pelo sangue, perfeitamente vaporoso, mais quente e, por assim dizer, nutriente. Por outro lado, em certas partes o sangue precisa ser resfriado, espessado e figurativamente usado. Dessas partes ele volta ao ponto de partida, ou seja, o coração, como para a sua fonte ou o centro da economia do corpo, para ser restaurado ao seu estado anterior de perfeição. Então, com o calor natural, poderoso e abrasador, uma espécie de armazém de vida, ele é reliquefeito e impregnado com espíritos e (se posso dizer assim), adoçado. Do coração ele é redistribuído. E tudo isso depende o movimento de pulsação do coração.

Hoje, isso é descrito desse modo:

  • Exitação elétrica do coração
  • Miocárdio em funcionamento (sem marcapasso)
  • Alterações no potencial de membrana
  • Fase 4
  • Potencial de repouso (-90mV)
  • Potencial próximo do equilíbrio-K

Cientificamente, embora seja deprimente, não passamos de sacos à prova d’água cheios de produtos químicos carregados de eletricidade, que um dia sofrem uma pane de força. Assim são os nossos cães, os pássaros no jardim, os elefantes no zoológico, os camundongos na cozinha, os peixinhos dourados, as libélulas nas rosas, a unicelular ameba que nos dá desinteria, o vírus da gripe. Ao contrário deles, ao contrário até dos macacos que saltam de galho em galho, logo abaixo de nós na árvore da evolução, nós sabemos que vamos morrer.

“Este corpo não pode ser tudo que eu sou – esse é o brado humano” reconhece C. P. Snow. Assim a humanidade concebeu a vida eterna, de uma mistura de medo e vaidade. E Deus tornou-se uma feliz criação humana, como Mickey Mouse.

“Onde há três médicos, há dois ateus”, diz o provérbio medieval latino. Contudo, certamente qualquer médico ficaria agradavelmente surpreso se reacordasse numa nuvem, tocando harpa ao lado de Bertrand Russel, que filosofou com firmesa: “Quando eu morrer, vou apodrecer”, 97 anos antes que isso acontecesse.

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