Uma crônica de natal

Ao que tudo indica, durante os dois primeiros séculos cristãos e quase metade do seguinte, os discípulos e fiéis seguidores de Jesus de Nazaré, chamado o Cristo (= Ungido ou Messias), não festejaram a data do seu nascimento. Foram, coincidentemente, os séculos de perseguição, da Igreja nas catacumbas e de milhares de cristãos assassinados pela sua fé, admirados e venerados sob a designação de mártires ou testemunhas. Não se descarta a hipótese de que a rudeza dos tempos não era propícia à festa e de que, pouco a pouco, caiu no esquecimento o dia natalício do Senhor. Se é que esse dia foi jamais conhecido. Ninguém sabe e pode dizer se entre os semitas, na cultura e na religião judaica do tempo de Jesus, estariam em voga as comemorações natalícias.

Com a vitória da Ponta Mílvio (“in hoc signo vinces!”), a “pax constantiniana” o édito de Milão e o fim das perseguições ao cristianismo transformado em religião do império, a Igreja – a comunidade cristã – pode enfim celebrar em suas basílicas o acontecimento: a vinda de Jesus Cristo, Deus feito homem, e sua Pessoa. Então naquele início de século IV, tão marcante, por muitos títulos, na história da Igreja, ainda não foi o nascimento de Jesus – Messias que foi celebrado. Foi sua Páscoa: agonia, paixão, crucificação, morte e ressurreição, acrescentadas, sem tardar, a ascensão, Glória e Senhorio à Direita do Pai. Esta foi, no início, a Festa, por excelência, a maior e até mesmo a única.

Quando, pouco a pouco, de modo natural, prevaleceu o desejo de festejar também o nascimento do Salvador, e, por conseguinte, o mistério do Deus Encarnado, foi preciso fixar um dia no ano. Na impossibilidade de encontrar a data histórica, procurou-se uma carregada de valor simbólico. Vigorou, então, um costume da Igreja: construir um sinal cristão onde quer que se encontrasse algo de pagão. Foi assim que o Pantheon, de templo de todos os deuses tornou-se santuário de todos os mártires ou de todos os santos, com festa fixada no dia 1o de novembro. Assim também, sobre o templo de Minerva, ergueu-se a basílica de Santa Maria.

Para comemorar o nascimento de Jesus, nenhuma data pareceu melhor e mais indicada do que o dia 25 de dezembro. Não porque fosse a mais provável, na verdade era improvável ao máximo que César Augusto convocasse o recenseamento, com longas e incômodas viagens que comportaria. Improvável que uma mulher desse à luz numa estrebaria e colocasse seu Menino envolvido em trapos numa manjedoura, no rigor do inverno da Judéia. A data de 25 de dezembro era indicada por bem outro motivo. Naquele dia, mais em uma província do império, menos em outra, mas afinal em todo o império romano, celebrava-se o deus Mithra. Este era uma encarnação do sol, mais exatamente o Sol Oriens ou Sol Nascente. Em Mithra adorava-se o astro-rei porque, vencido e sepultado em cada anoitecer, ele era bastante forte e soberano para renascer cada manhã, vivo, radioso, iluminador e fecundante, gerador de vida. Com absoluta naturalidade, os cristãos transferiram para Jesus Cristo os atributos de verdadeiro Sol Oriens e puseram-se a festejar, a 25 de dezembro, o seu sempre antigo e sempre novo nascimento. Sol Oriens. Ele é chamado numa das antífonas de O’, na liturgia das vésperas, alguns dias antes do Natal.

Quando, numa época um tanto diluída no tempo e, portanto, não rigorosamente definida, um tempo chamado do Advento, foi instituído antes do Natal, como a Quaresma precede a Páscoa, ficou ainda mais evidente um certo caráter pascal na figura do Sol Oriens, ou Sol que ressurge cada manhã após cada noite de Paixão. Assim Natal e Páscoa se entrelaçam na celebração litúrgica do Mistério de Cristo.

Não faltaram épocas em que, segundo tendências da piedade popular, o aspecto que mais se acentuou no Natal foi o da pobreza de um Messias nascido numa estrebaria, na periferia de Belém, pequeno burgo na periferia de um minúsculo país de pouca importância ao lado das grandes potências de então. Foi também o aspecto da pequenez e fragilidade da criança nascida de Maria de Nazaré. Este aspecto é profundamente bíblico: “Ele, rico como era, se rebaixou e tomou a condição de escravo”, Ele “se esvazou”. O contraste manifestado nestas expressões empresta grande força ao Mistério do Natal. Os males de um consumismo desenfreado não deveriam esgotar essa força. Para usar a palavra de Machado de Assis, não deveria mudar o Natal, neste sentido. Pois é graças a esta concepção do Natal que o mistério da Encarnação e do Natal explica o mistério dos Homens e de cada homem.

Feliz Natal e um ano 2010 pleno de prosperidade e felicidade, e que todos os seus sonhos e desejos se realizem.

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