Lucila Soares
A violência sexual contra crianças é um tema sobre o qual paira uma barreira de silêncio. Esporadicamente, vem à baila sob forma de um escândalo envolvendo alguém famoso, como aconteceu com o cantor Michael Jackson, e rapidamente desaparece. Quando o assunto é o abuso praticado por alguém da família, o pacto é ainda mais inquebrantável. Não existem sequer estatísticas confiáveis, porque na maioria das vezes a criança sofre calada a experiência devastadora do incesto. Um passo importante para encarar a realidade desse crime terrível, pelos efeitos sobre as pequenas vítimas e por violar um dos tabus fundadores da civilização, está sendo dado no Rio de Janeiro, pela Clínica Psicanalítica de Violência. Criada em 1996, a instituição tem registrados mais de 2.000 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes de todas as classes sociais, dos quais mais de 80% têm como agressor o próprio pai. As psicanalistas Graça Pizá e Gabriella Ferrarese Barbosa, fundadoras da clínica, debruçaram-se sobre 853 prontuários de atendimento a crianças entre 2 e 9 anos de idade, para tornar público o drama do incesto sob o ponto de vista delas. O resultado está publicado no livro A Violência Silenciosa do Incesto (Imprensa Oficial de São Paulo; 244 páginas; 60 reais).
Os desenhos que ilustram esta reportagem fazem parte do conjunto de 31 imagens selecionadas por Graça Pizá para ilustrar o que batizou de “vocabulário ilustrado dos afetos emparedados” � uma síntese dos sentimentos mais freqüentemente expostos por seus pequenos clientes. São um testemunho comovente da experiência aterrorizante do incesto. Numa idade em que não têm como compreender o que sentem quando violentadas, elas se desenham mutiladas, isoladas. O medo é comunicado através de seres monstruosos ou, ao contrário, de situações absurdamente realistas, povoadas por enormes órgãos sexuais. Uma menina retratou-se refletida num espelho de teto como os que se vêem nos motéis, deitada sob um homem identificado como “papai”.
Como ajudar essas crianças, vitimadas justamente pelas pessoas em quem mais deveriam confiar, a quebrar a barreira do silêncio? “A criança violentada vive emparedada pelo seu próprio medo de falar e pela surdez de quem deveria ouvi-la”, diz Graça Pizá. Por isso a proposta do centro é formar uma rede de apoio e atendimento. O livro traz artigos de especialistas em medicina, educação, Justiça e segurança que analisam em suas respectivas áreas as dificuldades para reconhecer e enfrentar o problema. Em todos, a constatação é que, diante de uma evidência de incesto, a tendência é descrer da criança. O principal motivo é que esse tipo de violência é algo que vai contra a própria noção de humanidade, uma vez que a proibição de relações sexuais entre pais e filhos é uma das características que nos distinguem dos animais. Os intricados desvãos dos relacionamentos familiares são outro obstáculo.
Sobre o pano de fundo da rejeição que a idéia do incesto desperta surgem os mecanismos que criam e mantêm o silêncio. Diante de uma suspeita, a tendência é fechar os olhos, e isso se faz desqualificando a criança como interlocutor, jogando o que ela diz sob o rótulo de “fantasia infantil”. O impulso sexual infantil existe e dá origem a fantasias que podem, sim, envolver o pai, o padrasto, o namorado da mãe, ou a própria mãe. Mas a criança que fantasia esse tipo de envolvimento imaginário não tem o relato de sofrimento, de dor física, de nojo, de medo que uma vítima de violência real faz. “Quando a base é fantasiosa ou simplesmente mentirosa, a história não se sustenta”, afirma Graça Pizá, que só não confirmou 0,5% das suspeitas de incesto que chegaram à Clínica de Violência.
O triste é constatar que, mesmo quando a criança consegue ser ouvida em casa, o crime não consegue ultrapassar as barreiras externas, como mostra o relato de uma mulher que descobriu que seu ex-marido abusava da filha de 2 anos e quis processá-lo. Não conseguiu. Sem prova material de estupro (que na maior parte das vezes não existe), seria palavra contra palavra. Mais do que isso, a denúncia poderia virar contra ela, por acusação sem provas. “O que mais me chocou foi a impossibilidade de agir. Eu não podia fazer nada”, diz. Para a advogada Elizabeth Süssekind, ex-secretária nacional de Justiça, o problema é que o Judiciário só crê no material, no incontestável. Com isso, muitas vezes crianças que foram abusadas acabam devolvidas judicialmente a seus agressores. É preciso começar a mudar essa lógica, definindo os caminhos jurídicos de reconhecimento da credibilidade das vítimas, ressalvadas evidentemente com as devidas garantias aos acusados. O principal, em qualquer circunstância, é ouvir o que a criança tem a dizer. Esse é um direito fundamental de todo ser humano.
E quando a criança provoca? Ninguém fala nada. Ela sempre é a vítima, pois mais p* que ela seja.
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