Entre o discreto estalar das elegantes poltronas de couro, o tilintar do cristal, o suave farfalhar do Times nos clubes masculinos de Pall Mall, estão estranhas peças antigas que nem os membros mais antigos sabem identificar. A banqueta forrada de veludo com borlas, para a gota, debaixo da confortável poltrona do clube, permitia o dedo grande do pé, enfaixado e tão sensível que o zumbido de uma mosca era antecipado com alarme, ser mantido abençoadamente na horizontal.
Muitas doenças têm clubes, com endereços e telefones, desde os Alcoólatras Anônimos e Tratamento da Artrite até as Doenças Venéreas. Algumas doenças crônicas se transformaram em clubes informais, uma camaradagem entre os membros para compensar o triste fato de não haver tratamento para elas. No começo do século XX os sanatórios para tuberculosos, nos Alpes suíços ofereciam a camaradagem do refeitório militar durante a guerra, com um índice de mortalidade bastante inquietante. A gota era doença própria dos clubes de cavalheiros. Suas vítimas, homens claudicantes, com o pé enfaixado, de muletas, gordos, corados, mal-humorados imponentes, inflamavam a imaginação de Gillray, Rowlandson de todos os cartunistas, como as juntas dos seus próprios dedos grandes do pé.
Era uma zombaria mal orientada. Sir Thomas Browne descobriu, em meados do século XVII, que: ” quantos homens famosos, imperadores e pessoas cultas são exemplos dessa doença, provando que não é uma doença de todos, mas de homens sensatos e de valor. “
Seis admiráveis vítimas dessa doença histórica:
- Byron. (” A gota, que enferruja as juntas aristocráticas “..)
- W. S. Gilbert. (“um gosto pela bebida combinado com gota o havia curvado para sempre. “)
- Jaroslav Hasek. O bom soldado Svejk. (“O coronel se transfomou depois de um ataque de gota, de um cordeiro pacifico num tigre feroz… ele rugia com a voz terrível de um homem assado lentamento num espeto: “Saiam todos” Tragam-me um revolver!”)
- Sydney Smith, humorista. (observo que a gota ama ancestrais e genealogia. São necessárias cinco ou seis gerações de cavalheiros ou nobres para dar a ela a força máxima.”)
- James Thomson, poeta, (“A gota insone aqui conta os cantos dos galos, um lobo agora o mastiga, agora uma serpente o pica.”)
- Antony Trollope. (“Velhos cav alheiros geralmente são mal-humorados. A gota e aquela outra coisa, vocês sabem”.)
A gota é sem dúvida uma doença dos literatos.
Havia gota nos esqueletos do ano 3 dC, nos Costwolds. Os romanos engoliam a propensão para a gota com o chumbo dos seus copos de vinho. “Os pobres raramente têm gota”, observava o The Heaven of Health, em 1584. Isso porque os pobres viviam de pão de cevada e queijo, ao passo que a classe dos gotosos comia proteína, que contribui para a doença. O vinho do porto acendia o pavio.
Thomas Sydenham (1624-89) escreveu Tratado sobre a gota, em 1863, onde diz: “A vítima vai para a cama e dorme com boa saúde. Mais ou menos às duas da manhã é acordada por uma dor forte no dedo grande do pé.. é tão acentuada a sensibilidade da parte afetada que não suporta o peso das cobertas nem a vibração de passos no chão do quarto. A noite é passada em tortura e insônia…” O médico escreveu com tanta percepção clínica porque sofria horrivelmente de gota também.
Sydenham, de Wynford Eagle, em Dorset, descreveu graficamente todas as doenças. A coréia de Sydenham, “a dança de São Vito”, nas crianças infectadas por streptpcocos, foi um dos seus originais. Ele notou a diferença entre o sarampo e a escarlatina. “O sarampo geralmente ataca crianças… inquietação, sede, falta de apetite, língua esbranquiçada (mas não seca)… e no quarto dia aparecem no rosto e na testa pequenas manchas vermelhas, como picadas de mosquitos”.
Língua esbranquiçada? Talvez Sydenham tenha notado também os pontos brancos na boca, que permitem um diagnóstico precoce dois séculos antes de Henry Kople (1858-1927), do Hospital Monte Sinai, em Nova York.
Sydenham é chamado de “Hipócrates inglês”, porque ele eliminou as teorias, o misticismo e a magia que infestavam a medicina daquele tempo, Reviveu a idéia de Hipócrates de tratar o paciente na própria cama, por causa do que ele viae o que sabia. Ele preferia Dom Quixote aos livros de medicina. Além disso, possuía o supremo dom clinico de reconhecer quando podia fazer o melhor possível por um paciente e para sua reputação simplesmente não fazendo coisa alguma.
Seu ardente pupilo foi o médico-pirata Thomas Dover, que contraiu varíola e tratou a febre com o método de Sydenham de quarto frio, ar fresco, nada de cobertas e doze garrafas de cerveja fraca a cada 24 horas, Ele distribuía ópio para todos, temperado com açafrão, canela e cravo. Sydenham era modesto, impassível, distante, compassivamente prestando contas a Deus por seus pacientes. Fora um dos capitães de cavalaria de Cromwell e tinha uma das admiráveis qualidades de Cromwell, a de farejar a merda no vento da história.
Depois de Sydenham, a política externa da Grã-Bretanha estabeleceu oficialmente a gota com o Tratado Methuen, de 1703. O objetivo era atrair os portugueses para fora da França, estabelecendo um imposto de sete libras por 253 galões de vinho do porto contra 55 libras por 253 galões de clarete. Os cavalheiros ingleses podiam agora tomar garrafas de vinho do porto a noite, uma vez que não tinham nada para fazer depois de ler o último volume de Pamela, exceto conversar à mesa do jantar até desaparecerem debaixo dela.
Com a louvável igualdade social da nossa era, a gota agora é acessível a seis entre 1.000 britânicos.
O Tratado Methuen foi anulado em 1835.
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