19 de fevereiro de 2009 | Autor: heinz | Editar
Tive o privilégio de ter sido aluno desta fera das ciências.
por Jackson Gomes Júnior
Professora por vocação, Glaci Zancan dedicou 43 anos da vida a formação de novos profissionais. A gaúcha de São Borja virou uma personalidade ativa da ciência nacional. Em duas gestões consecutivas ocupou a presidência da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) e também foi diretora do Centro Brasil-Argentina de Biotecnologia. Ativista da ciência, ela gosta de frisar: “mesmo na SBPC, nunca deixei de ministrar minhas aulas na universidade”. Professora emérita da UFPR e pesquisadora-bolsista do CNPq, Glaci Zancan é doutora em bioquímica e fez dois pós-doutorados, um na Argentina – com Luiz Frederico Leloir, prêmio Nobel de Medicina de 1970 – e outro na Bélgica. Nesta entrevista, ela fala sobre ciência, preconceito, educação e fé.
Quando a senhora decidiu que seguiria carreira científica?
Assim que entrei na faculdade de Farmácia. Durante o pré-vestibular tentaram me convencer a fazer Medicina, História, mas não houve ninguém que me demovesse. No primeiro ano do curso ingressei na iniciação científica. Eu tinha 20 anos. Desde o início também participei do centro acadêmico. Sempre discuti propostas para a construção de uma nova universidade, que seja centro formador de conhecimento e com um corpo docente altamente qualificado. Em 50 anos não mudou minha preocupação.
Naquela época existiam muitas mulheres atuando neste setor?
Sim. Já existiam mulheres trabalhando com ciência, mas nunca nas lideranças.
Um fato curioso e lamentável: a senhora teve um pedido de bolsa negado pelo Instituto Nacional de Saúde Pública dos Estados Unidos porque é mulher. A exclusão por gênero ainda é forte na carreira científica?
Recebi uma carta com esta informação, de que o pedido de bolsa foi negado porque sou mulher. Realmente, na Academia de Ciência não existem tantas mulheres e quanto mais a carreira vai afunilando, mais escassa fica a participação feminina.
São 43 anos de profissão. Qual é a sensação de ter contribuído na formação de tantos profissionais?
É uma alegria. É fundamental formar novas cabeças. Independente de fazer carreira científica, o bom professor tem que formar bons profissionais. Sempre fui muito exigente com meus alunos. Veja bem, se você é muito bonzinho, não forma ninguém. Professor que passou pela universidade e não formou ninguém não foi professor. Fico feliz em ver que no departamento de bioquímica deixamos uma escola.
Como melhorar a qualidade do ensino e da pesquisa nas universidades?
Temos que ter uma universidade mais ágil e tornar a pesquisa universal, para que todos pensem os problemas do País e encontrem soluções. A universidade tem que se tornar um centro de reflexão. Minha sugestão, e algumas pessoas acham que estou ficando maluca por conta disto (riso), é acabar com os currículos padronizados. Gosto do sistema europeu, em que os alunos se qualificam a fazer os exames quando se julgam aptos. O ensino tem que ser formativo. O sistema brasileiro é informativo, isso tem que acabar.
Qual é o balanço que a senhora faz do período que esteve à frente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência)?
Dediquei-me muito a SBPC, sem deixar minhas atividades normais, sempre ministrei minhas aulas na universidade. A SBPC possui uma estrutura franciscana e, quando assumi, os documentos que asseguravam a utilidade pública à entidade tinham sumido. Tive que recuperar estes documentos e negociar as dívidas da SBPC. Também ajudei a edificar o sistema editorial, que hoje é independente. Enfim, tratei de manter a instituição o mais saudável possível.
Como a senhora analisa o atual sistema de ciência e tecnologia do Brasil?
O problema é que o orçamento do CNPq não cresce na proporção da massa crítica. Em minha opinião, tem que se aumentar o orçamento de pesquisa do CNPq e democratizar estes recursos. Caso contrário, somente os velhos – que são mais competitivos, por conta do currículo – vão conseguir recursos para suas pesquisas.
O que prejudica a ciência brasileira?
A burocracia. A ciência brasileira é refém dos burocratas. Você tem que brigar para trabalhar. Tinha que ser mais fácil. Para o pesquisador importar algum produto é uma dificuldade. Muita coisa fica retida e às vezes perdemos o trabalho. Faz 50 anos que é assim. Lembro de um fato que ocorreu comigo. Um frasco, contendo uma quantidade ínfima de uma substância radioativa, ficou retido no aeroporto de Curitiba. Fui até o local, para resolver o assunto. Quando cheguei lá não queriam liberar o frasco. Perguntei ao rapaz, que estava atravancando o processo, qual era a formação dele. Ele me respondeu que era advogado, argumentei que frasco é uma coisa e a quantidade de substância é outra coisa. Também lhe disse que era professora de bioquímica da UFPR e que aquela quantidade podia ser ingerida sem fazer mal à saúde. Quando terminou, levei o material para universidade. Se é pra resolver, eu resolvo (risos).
A maneira como a natureza de hoje é considerada foi, em grande parte, determinada pela termodinâmica estatística. Ou seja, o estudo dos seres vivos não é mais somente uma ciência da ordem, mas também da medida. Essa conclusão só foi possível por conta da reaproximação da biologia com a física. É preciso que a ciência busque reatar os laços da multidisciplinariedade para que as pesquisas atinjam resultados mais profundos?
Sem dúvida. Por exemplo, no departamento de bioquímica tem um instrumental químico pesado, sem o qual não é possível estudar as transformações que ocorrem nos seres vivos. O avanço da pesquisa científica foi tão grande que existem sobreposições. Não há ramos da ciência estanques. Eu não faço bioquímica sem saber fazer genética e vice-versa.
Na época da promulgação da Lei da Inovação (que estabeleceu medidas de incentivo à inovação e à pesquisa científica tecnológica no ambiente produtivo) a senhora declarou que as universidades seriam prejudicadas, pois perderiam professores orientadores para a indústria. Isto ocorreu?
É muito recente para analisar. Mas a Lei da Inovação é algo preocupante, porque as universidades vão perder as matrizes geradoras.
Como ampliar o parque científico brasileiro?
Apoiando os jovens, por isso o fomento do CNPq é fundamental.
A ciência no país tem se renovado?
Tem, a renovação podia ser maior, mas tem. É uma alegria imensa ver os alunos da iniciação científica apresentarem os trabalhos. Os meninos estão na iniciação científica é já têm artigos publicados em revistas internacionais. É muito bom ver isto acontecer.
A senhora ainda participa do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social?
Ainda faço a análise de documentos. O Conselho foi uma grande experiência. São pessoas das mais variadas formações que estão interessadas em discutir os problemas do País. A conclusão do Conselho, que foi apresentado ao presidente Lula, é de que a educação deve ser prioridade de governo.
Este é o discurso do senador Cristóvam Buarque.
É, mas ele também propõe a federalização do ensino. Isto é incostitucional. Tem que mudar a Constituição. A verdadeira briga é rever a quantidade de municípios que existem no Brasil. O mapa de municípios é um retalho. Isto tem que mudar. Mas ninguém quer comprar esta briga política.
Por falar em política, lembro de um fato curioso. A senhora estava presente em um evento, no qual o ex-ministro da Ciência e Tecnologia Ronaldo Sardenberg foi atingido com um ovo.
Fiquei irritada. Aquele menino que atirou o ovo não entendeu o que é a universidade, a democracia. A universidade é um espaço aberto a idéias. Ele agiu como um ditador, queria cercear a liberdade de pensamento dentro uma universidade, isto não concordo.
Qual a relação entre ciência e desenvolvimento econômico?
Existem dados matemáticos, feitos pelo Congresso Americano. Não lembro agora, mas está provado, existe uma correlação.
Quais são os limites para uma investigação científica?
Os éticos, não há a menor dúvida. A pesquisa não pode ferir o ser humano.
A senhora se sente recompensada por ter investido toda a vida para o progresso da ciência?
Sim. A educação no Brasil cresceu. Podemos falar que contribuímos para o País avançar. Minha geração construiu a pós-graduação, que hoje é considerável em todas as áreas do conhecimento. Mas na universidade tínhamos condições de ir mais longe, com um Conselho de Ensino e Pesquisa mais amplo.
Qual seu sonho para o futuro do Brasil?
É não ter toda essa desigualdade. Não conseguimos avançar nisso, porque a educação ainda não é prioridade. É preciso que a educação tenha prioridade zero. Estes escândalos de corrupção são conseqüências da falta de educação. Falta educação para a cidadania, que ensine as pessoas o valor que tem o bem-comum. Se todos tivessem essa consciência, não se apropriariam do que é dos seus irmãos.
O Dr. François Jacob define o homem, no livro “O rato, a mosca e o homem”, como uma terrível mistura de ácidos nucléicos e lembranças, de desejos e proteínas. Ele completa com a afirmação de que “o século que termina ocupou-se muito de ácidos nucléicos e de proteínas. O seguinte vai concentrar-se sobre as lembranças e os desejos”. A senhora concorda?
Sim. O avanço da neurociência é fundamental para ampliar o conhecimento que temos sobre o homem.
A senhora é uma pessoa religiosa?
Sim. Sou católica, já li muito sobre filosofia.
Fé é algo perigoso para um cientista, misturar o que ele crê e o que ele sabe?
São dois níveis diferentes. O primeiro é o que viemos fazer no universo, este é o nível da fé. O segundo é a busca por respostas, que é a ciência. E durante esta busca, nos estudos, percebemos que o mundo é perfeito. Eu acredito que existe um organizador maior deste sistema, um ente superior, que norteia toda esta complexidade. Pode chamá-lo como quiser. Francis Crick, co-autor da formulação da dupla hélice do DNA, terminou seus estudos fazendo uma busca científica sobre o que é a alma. Hoje a origem da vida ainda é não está esclarecida, porém mais tarde pode ser que alguém encontre alguma resposta.
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