“Decifra-me ou devoro-te!” O eco do desafio mitológico da esfinge de Tebas acompanha a divulgação das sondagens eleitorais.
Na etapa final da campanha, não existem enigmas difíceis: a trajetória das intenções de voto diz tudo o que importa. Contudo, nas etapas prévias, o panorama é mais complexo. Os analistas têm destacado as informações sobre a vontade de mudança do eleitorado e os índices de rejeição da presidente que busca a reeleição. São dados relevantes na equação, mas não deveriam obscurecer um outro, que configura um paradoxo: o crescimento das intenções de voto nos candidatos de oposição continua longe de refletir a vontade majoritária de mudança. Se não interpretarem corretamente o paradoxo, os oposicionistas oferecerão a Dilma Rousseff um triunfo que ela não pode obter por suas próprias forças.
Publicamente, o PSDB e o PSB asseguram que o crescimento das candidaturas de Aécio Neves e Eduardo Campos é só uma questão de tempo – ou seja, de exposição no horário eleitoral. Na hipótese benigna, eles não acreditam nisso, mas falam para animar suas bases. A hipótese maligna é que se refugiam no pensamento mágico, acalentando o sonho de uma vitória por default. De um modo ou de outro, parecem longe de admitir o que as sondagens eleitorais insistem em demonstrar: ambos carecem de uma narrativa política capaz de traduzir o desejo majoritário de mudança.
A candidatura de Eduardo Campos sofre de um mal de origem. O ex-governador de Pernambuco era, até ontem, um “companheiro de viagem” do lulismo, e sua vice, Marina Silva, fez carreira política no PT, ainda que sua dissidência já tenha uma história. Desse mal decorre um frágil discurso eleitoral: a “terceira via”, ao menos na versão de Campos, é um elogio do “lulismo sem Dilma”. O discurso viola a verdade política, pois o governo Dilma representa, em todos os sentidos, o prolongamento dos mandatos de Lula. De mais a mais, é inverossímil, pois o eleitorado aprendeu que “Lula é Dilma” e “Dilma é Lula”.
A candidatura de Aécio Neves sofre de um mal distinto, evidenciado nas campanhas presidenciais de Geraldo Alckmin, em 2006, e de José Serra, em 2010: o PSDB não sabe explicar o motivo pelo qual quer governar o país. Oito anos atrás, Alckmin apostou suas chances na tecla da denúncia de corrupção. Há quatro anos, Serra investiu nas suas qualidades pessoais (a “experiência”) e no tema da “gestão eficiente”. A despolitização do discurso dos tucanos refletiu-se na apagada atuação parlamentar de Aécio, que nem sequer tentou transformar sua tribuna no Senado em polo de difusão de uma mensagem oposicionista. Não é fortuito que, a essa altura da corrida presidencial, suas intenções de voto permaneçam tão abaixo dos índices de rejeição à candidatura de Dilma.
O PSDB tem algo a aprender com o PT. Nos seus anos de oposição, o PT construiu uma narrativa sobre o governo e a sociedade que, mesmo se mistificadora, sintetizava uma crítica fundamental às políticas de FHC e indicava um rumo de mudança. Naquele tempo, o PT dizia que os tucanos governavam para a elite, acentuavam as desigualdades sociais e, no programa de privatizações, queimavam o patrimônio público no altar dos negócios privados. O PSDB desperdiçou seus anos de oposição sem fazer a defesa do legado de FHC, propiciando a cristalização da narrativa petista. Consequência disso, não formulou uma crítica de conjunto aos governos lulopetistas, limitando-se a aguardar que, num passe de mágica, o poder retornasse às suas mãos. Agora, Aécio só triunfará se produzir, em escassos meses, a narrativa que seu partido não elaborou ao longo de 12 anos.
Lula disse, várias vezes, e com razão, que “os ricos nunca ganharam tanto dinheiro como nos seus governos”. O PT governa para a elite, subsidiando pesadamente o grande capital privado enquanto distribui migalhas do banquete para os pobres, a fim de comprar seus votos. O contraste entre os valores envolvidos no Bolsa Empresário e os dispêndios no Bolsa Família contam uma história sobre o lulismo que o PSDB ocultou enquanto fingia fazer oposição. Terá Aécio a coragem de expô-la, mesmo às custas de desagradar ao alto empresariado?
Nos três mandatos do lulopetismo, o governo promoveu o consumo de bens privados, descuidando-se da geração de bens públicos. Os manifestantes de junho de 2013 foram rotulados pelo PT como “despolitizados” por apontarem essa contradição, levantando as bandeiras da educação e da saúde (“escolas e hospitais padrão Fifa”). No fundo, as multidões que ocuparam as ruas até serem expulsas pelos vândalos e depredadores estavam tomando uma posição sobre as funções do Estado. Terá Aécio a lucidez de reacender esse debate, do qual o PSDB foge sempre que o PT menciona a palavra “privatização”?
O sistema político do país vive um longo outono, putrefazendo-se diante de todos. A “solução” oferecida pelo PT é uma reforma política que acentuaria seus piores aspectos, junto com a rendição do Congresso à pressão dos “conselhos participativos”. Mas a raiz da crise crônica está fora do sistema político: encontra-se na própria administração pública, aberta de par em par à colonização pelos partidos políticos. Aécio promete operar uma cirurgia puramente simbólica, reduzindo o número de ministérios. Terá ele a ousadia de, desafiando o conjunto da elite política, propor um corte profundo, radical, no número de cargos públicos de livre indicação?
Ano passado, ouvi de uma assessora econômica tucana a profecia de que, antes do fim da Copa, um colapso econômico provocado pela inversão da política monetária americana decidiria a eleição presidencial brasileira. Era um sintoma da persistência do pensamento mágico que hipnotiza o PSDB desde a ascensão de Lula à presidência. Não: o Planalto não cairá no colo de Aécio. Para triunfar, ele precisa oferecer ao país uma narrativa política coerente.
Demétrio Magnoli é sociólogo.
Publicado em 03/07/2014 | Demétrio Magnoli