Acho o Brasil infecto. Não tem atmosfera mental;
não tem literatura; não tem arte;
tem apenas uns políticos muito vagabundos.
Carlos Drummond de Andrade
Waldo Luís Viana*
As enchentes e secas cíclicas no Brasil parecem não ter mesmo solução e suas terríveis consequências recaem sempre sobre a cabeça dos pobres. São estes os que, dolorosa e fatalmente, irão pagar a conta das tragédias.
Pobres moram mal, em favelas e encostas, submetidos à moradia subumana, sujeitos a escorregamentos, deslizamentos e soterramentos de si próprios e de muitos entes queridos. Pobres sofrem com a falta d’água e de bens fundamentais de maneira crônica e esses males são normalmente tratados de forma paliativa e episódica.
Os políticos detestam os pobres, com honrosas e minoritárias exceções, mas fingem sempre gostar muito deles, principalmente em épocas eleitorais. Já se disse que as eleições são um período de “delirium tremens” para as oligarquias e plutocracias, que apostam tudo em seus ventríloquos a serem eleitos para o Executivo e o Legislativo, cobrando a conta dos gastos de campanha nos anos posteriores, principalmente o primeiro. Tais despesas vultosas serão recobradas em termos de impostos, diretos e indiretos, bem como com a formulação de fraudes ao Erário e licitações superfaturadas que prepararão o terreno para a formação de caixinhas para as próximas eleições. Os eleitos que não obedecerem ao figurino dos patrões não terão oportunidades fáceis no próximo pleito. E assim segue a vida…
Durante o mandato, conquistado duramente, os políticos querem mesmo os pobres atrás dos cordões de isolamento. Eles consideram essa rama da sociedade uma verdadeira praga, porque, enquanto os ricos são tímidos para pedir favores (rico faz negócio!), os pobres, segundo a classe política, são sempre carentes, ao receberem benesses ou melhorias mal agradecem e a seguir vão pedindo, sem cessar, novos favores. Quando são apanhados no círculo vicioso das dificuldades de eleitores dos grotões miseráveis, os políticos morrem de raiva dos pedidos constantes e querem se libertar dessas podres armadilhas propondo obras de fachada, muitas vezes desnecessárias ou supérfluas, mas que marquem a sua atuação junto a qualquer governo.
E os políticos sempre apostam que os pobres vão esquecer logo de quem elegeram, porque têm que continuar a tocar suas vidas miseráveis, e contam com a memória curta dos eleitores no sentido de que esqueçam suas vilanias e safadezas.
No Brasil, quando acontecem tragédias, os políticos gostam de sumir já que nada têm a dizer. Não adianta fazer promessas contra fatos inarredáveis nem utilizar o escape psicanalítico de culpar os outros, os antecessores “que nada fizeram”, ou apenas consolar os aflitos, lembrando o país do futuro que nunca vem, bem como repetir os esfarrapados e hipócritas pedidos a Deus. Tais estratégias, depois do leite derramado, lembram muito as tentativas inúteis de reanimar um defunto por infarto agudo ou infecção generalizada. Não têm jeito…
O solo urbano brasileiro é diferente do solo rural. Uma cidade é um local onde muitos habitantes se juntam em troca de abastecimento, segurança e bem-estar e isso é um fato sociológico e conhecido desde a Idade Média. O solo rural é diferente: ele é ocupado de maneira mais rarefeita, os bens imóveis são espalhados por distâncias mais seguras, ao invés de ficarem amontoados, a ponto de algumas propriedades conseguirem escapar de diversas tragédias comuns nas cidades. Se uma fazenda por acaso ficar embaixo d’água, provavelmente as vizinhas poderão escapar da mesma sorte, ou sofrer com menor intensidade, inclusive porque distâncias grandes correspondem a mudanças na fisionomia dos terrenos, cuja geologia pode variar, tornando alguns locais mais resistentes às intempéries. Mesmo em algumas grandes metrópoles, várias áreas escapam de inundações e outras não, demonstrando a heterogeneidade de suas regiões. O que é constatável de maneira crônica é que, no Brasil, as localidades mais pobres são as mais afetadas, porque carecem de medidas de ordenamento urbano e saneamento básico. Nelas, essas camadas miseráveis amontoam-se, tentando sobreviver, servindo às comunidades ricas da mesma região, observando-se a sensível mistura de guetos ricos e pobres interagindo em perigosa fricção e sintomas vários de violência.
Neste país, as grandes cidades são partidas, gerando conflitos insolúveis que emergem de tempos em tempos, caracterizando uma Pátria de guerra civil mal declarada, que ressuma pelos noticiários repletos de lutas entre “mocinhos e bandidos”, onde não sabemos quem é o quê!
Todavia, essa massa que ocupa lugares inóspitos também vota e não quer ser removida de onde está, pelo simples fato de não ter para onde ir. Não podem se queixar ao bispo nem ao delegado e, na verdade, nada esperam deles. De vez em quando, recebem a visita de um político que, em troca de votos, quer dar uma de “bonzinho”, tentando urbanizar as favelas no plano vertical, ou seja, maquiar o cenário de casas mal construídas e prestes a cair com alguma melhoria apressada, retirando-se velozmente depois de eleitos, a fim de melhor “curtir o mandato”.
Aliás, mandato de político é o único matrimônio indissolúvel garantido em nossa terrível sociedade. Os políticos recebem os votos e depois que as urnas são fechadas vão embora, com pouquíssimas exceções – eu insisto – e quando o caldo entorna, isto é, quando surgem as enchentes e as tragédias eles não estão disponíveis e não se consideram responsáveis.
A palavra “remoção”, inclusive, virou palavra feia, porque os políticos populistas, demagogos e safados, assessorados por ONGs piratas, movimentos sociais e pelegos ligados ao governo, não querem remover os escombros da miséria porque se sustentam com ela. Afinal, os miseráveis são manipuláveis, sem educação e têm memória curta. A pobreza e a miséria, infelizmente, alimentam-se apenas do cotidiano. São seres humanos que vivem só por hoje. No fundo, sabem que não têm amanhã!
Assim, o solo urbano, além de ser gerido por legislação conservadora e completamente superada numa sociedade de massas, jamais será tema relevante de campanha, como no caso dos que se aproveitam da indústria da “reforma agrária”. Os dois assuntos, porém, têm similitudes, porque os conflitos no campo envolvem jagunços e sem-terra, enquanto na urbes ou polis a luta empreendida é entre favelados, traficantes, milicianos e as camadas mais ricas da classe média e abastada, que desejam evidentemente manter a todo custo as leis e o estado de direito.
É impressionante como os citados movimentos sociais e ONGs, que fazem tanto barulho ao invadir o solo agrário produtivo, reivindicando glebas e territórios para sem-terra, índios e quilombolas, espantosamente não se manifestam quando o país é afligido por secas e enxurradas nas cidades. Qual o motivo desse silêncio? Simplesmente porque mexer nesses temas não rende dinheiro nem verbas cedidas pelo nosso atencioso governo.
Político, no Brasil, só lida mesmo é com portas arrombadas. E, mesmo assim, as verbas destinadas às emergências, sem licitações ou controle estrito, são desviadas, sem dó nem piedade, por motivos fraudulentos, que vão do furto simples às caixinhas das próximas campanhas. Político aqui lucra até com desastre de trem. E costuma, nesses casos, até rir, sacrificando as gordas pregas…
Algumas instituições nobres do Estado são acionadas, porém, somente para mitigar o fedor dos mortos. Lamenta-se muito o ocorrido através da mídia, os pobres mobilizam-se para mandar aos seus irmãos desalojados e desabrigados roupas, cobertores, remédios e alimentos não perecíveis – e fica-se só nisso. Não há ações preventivas ou concertadas, somente paliativos, que serão repetidos, sem dúvida, na próxima tragédia. Melhor que a catástrofe atual, apenas a próxima – é o slogan oculto dos nossos senhores políticos.
Além disso, tais senhores desejam que o clima de estupor e amargo sofrimento seja logo substituído pelas próximas atrações: a Copa do Mundo, daqui a sessenta dias na África do Sul, as eleições gerais, em outubro deste ano e, por fim, as promessas da Copa do Mundo de 2014 no Brasil e as Olimpíadas de 2016 na cidade do Rio de Janeiro – que, juntas, comporiam o mosaico antecipatório de eventos bons, que contrastariam com a realidade má que todos vemos envolvendo o país agora.
E será com o mesmo cinismo e desfaçatez com que tratam o destino atual dos pobres e suas tragédias, que irão os políticos às ruas, no período eleitoral, tentar apertar suas mãos, retirando meleca do nariz de seus filhos pequenos, bebendo cachaça nas biroscas e implorando os mesmos votos que transformam este país nessa sociedade do nada. Porque ao serem eleitos, os políticos vão esquecer “daquelas pragas”, colocando-as atrás dos cordões de isolamento e reivindicando para si todos os privilégios que, por quatro anos ininterruptos, insistirão sempre em roubar dos outros.
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*Waldo Luís Viana é escritor, economista, poeta e desistiu da política por problemas estomacais.
Teresópolis, 11 de abril de 2010.
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