Micróbio muda tradução de informações do DNA

Protozoário enxerga “palavras” iguais de forma distinta, de acordo com contexto. Maquinário genético de criatura que usa cílios para se locomover contraria um dos dogmas centrais da biologia molecular moderna

CLAUDIO ANGELO
EDITOR DE CIÊNCIA

euplotesComo todo bom advogado sabe, às vezes a interpretação é mais importante que o texto em si. E isso parece valer também quando o texto em questão é a sequência de letras do DNA. É o que indica o estudo de um organismo de uma célula só chamado Euplotes.

Um grupo de cientistas acaba de mostrar que um mesmo trecho de três letras do genoma da criatura pode ser “lido” de formas diferentes dependendo do contexto, o que faz com que moléculas diferentes sejam sintetizadas pela célula. Isso contraria um dos dogmas da biologia molecular, segundo o qual cada um desses tripletos de DNA -os códons- só podem codificar uma molécula. Um códon é a receita para a construção de cada um dos aminoácidos, os tijolos básicos dos quais os seres vivos são feitos. As proteínas, moléculas que fazem de tudo dentro da célula, são compostas de dezenas ou centenas de aminoácidos enfileirados.

Existem na natureza 22 tipos de aminoácidos, cada um definido por uma sequência de três letras no DNA ou RNA. Assim, o aminoácido fenilalanina é codificado pela sequência UUU no RNA, a leucina pelas “letras” CUC e o triptofano pelo códon UGG, por exemplo.

Cientistas já sabiam que um mesmo aminoácido podia ser produzido por combinações diferentes de códons. Mas o inverso era considerado impossível, pois seria uma violação das características centrais do código genético. Se uma mesma sequência pode produzir duas moléculas diferentes, afinal, a evolução e a hereditariedade se tornam mais complicadas. Quem garante, por exemplo, que um gene herdado por um animal de seus pais terá a mesma função do gene original?

Entra em cena o Euplotes crassus, um protozoário. Biólogos da Universidade de Nebraska (EUA), descobriram que nessa criatura às vezes o códon UGA, que normalmente codifica o aminoácido cisteína, pode codificar também a selenocisteína. Relataram a descoberta em estudo na revista “Science”.

De alguma forma, explicam os pesquisadores, o DNA do Euplotes “sabe” quando inserir uma selenocisteína no lugar da cisteína. Ele não faz isso aleatoriamente, só nos genes que produzem proteínas que incluem selenocisteína. “Achamos que a função-padrão do códon UGA é inserir uma cisteína”, disse à Folha o bioquímico Vadim Gladyshev, líder do grupo de pesquisas que fez o estudo.

No entanto, explica, nos genes de proteínas com selenocisteína, há uma região do RNA que não é traduzida. Se há outros códons UGA no mesmo gene, diz Gladyshev, essa sequência “pode ficar enterrada na estrutura geral do RNA mensageiro [molécula que lê e copia a informação do DNA] ou impedida de interagir com o maquinário celular, então isso não interfere na inserção normal da cisteína”. Em algumas condições, como na tradução dos genes de selenoproteína, esse elemento é “exposto” e interage com a máquina de tradução da célula de modo a ordenar a inserção da selenocisteína.

Gladyshev diz que, por enquanto, essa bizarrice genética só é conhecida no Euplotes. Embora ele mesmo afirme que sua descoberta não força ninguém a repensar o código genético, ela abre uma possibilidade intrigante: a de que o código possa ter se tornado mais rico durante a evolução e que existam aminoácidos adicionais.

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