Curitiba…

O resto do Brasil não nos compreende!

Texto de Eduardo Affonso:

“Alguns anos vivi em Curitiba. Principalmente não fui lá muito feliz em Curitiba. Mas não guardo mágoas. Imagina.

Curitiba é uma espécie de Montevidéu ou Buenos Aires – uma cidade limpa, bonita, onde dá pra usar luva e cachecol, com uma língua e uma cultura relativamente parecidas com a nossa, só que mais perto do Brasil. E com a vantagem adicional de não ter que passar pela Imigração nem precisar de passaporte ou fazer câmbio (nossa moeda é aceita lá).

O povo é mais claro que o brasileiro, talvez fruto das ondas de imigração polonesa, russa, alemã, ucraniana. Ou talvez porque lá não bata sol.

Morei em Curitiba por 8 anos e retornei ao Brasil há quase 20, mas ainda me lembro do impacto de todas as mulheres serem louras e usarem topete (para dar mais ênfase à lourice). Que a maioria se vestia de preto e usava joias ou bijuterias douradas (o preto era para dar mais ênfase ao dourado das joias e do cabelo). Já me disseram que essa moda passou, mas só acredito vendo. Curitiba, para mim, é e sempre será uma imensidão de topetes louros e de vestidos pretos adornados de jóias douradas. E, claro, filas nas farmácias para comprar tintura amarela (há, claro, louras verdadeiras, mas para distinguir quais são quais, só chegando às vias de fato, o que não é tão simples quanto no Brasil – mas isso fica para outra postagem).

Um brasileiro que chegue por lá há de estranhar a comida: pinhão, pirogue, eisbein, bratwurst (esses dois, no Swarzwald) e sopa. Lá, sopa é considerada comida. Tem até rodízio de sopa!

Pinhão tem gosto de hóstia, só que mais sem graça, e a gente come para não fazer desfeita – meio assim como gringo prova farofa quando vem ao Rio. Pirogue tem gosto de pinhão, só que com recheio. O recheio costuma ter gosto de hóstia.

Um dos pontos altos da alta gastronomia curitibana é o almoço de domingo em Santa Felicidade. Quem provou sabe do que estou falando; quem não passou por essa provação, não tem como fazer ideia. Os outros hits culinários são o cachorro quente com duas vinas e o cuque.

Cuque tem cara de bolo, é feito com receita de bolo e tem gosto de bolo. Mas não é bolo: é cuque. Tem o cuque simples (com gosto de bolo simples) e o cuque de banana (com gosto de bolo de banana). Se no Brasil é inescapável ouvir “é pavê ou pá comê?” a cada vez que servem pavê, em Curitiba cada vez que tem cuque de banana alguém comentará que “banana no cuque é bom”. É uma tradição local. Ria, se não quiser passar por um gringo sem senso de humor.

A Adriana Zadrozny partilhou ontem esse delicioso glossário do curitibanês e deu vontade de acrescentar algumas coisas.

Em Curitiba as calçadas são de lousinha. Lousinha é uma espécie de azulejo de pedra (granito, basalto, sei lá). Como se fosse pedra portuguesa, só que grandona, tipo um palmo por um palmo. Elas apenas fingem estar cimentadas no chão, mas são, na realidade, armadilhas. Você pisa numa ponta, a outra ponta levanta e espirra água pra todo lado.

Sim, porque em Curitiba chove. Não digo que chova diariamente, porque seria injusto. Chove várias vezes ao dia. Se você sente que não dá uma dentro na vida, vá ser meteorologista em Curitiba: é só prever chuva e suas chances de acertar são de 114%. E quando chove infiltra água sob as lousinhas. E a água fica ali, empoçada, o ano inteiro, de tocaia, só esperando você pisar. Indo a Curitiba, finja que tem TOC e só pise bem no meio das lousinhas – assim espirra água do mesmo jeito, só que nos outros, não em você mesmo/a.

Existe também o calçamento de pedra portuguesa, que eles chamam de petipavê. O carpete eles chamam de carpê. O papel manteiga, de sulfurizê. Sim, curitibano que se preza estudou não só no Goethe, mas também na Aliança Francesa.

As duas principais ruas do centro são a Marechal e a Marechal. Mas não tem como confundir. A Marechal é a que vem de lá pra cá e acaba na Praça Tiradentes. Já a Marechal é transversal a ela. É pelo contexto que você deduz a qual Marechal a pessoa se refere.

Todo mundo de uma geração atrás sabe o que estava fazendo quando o Kennedy morreu. Todo mundo da nossa geração lembra o que estava fazendo quando caíram as torres gêmeas. Em Curitiba, o evento histórico indelével na memória das gentes é a neve de 1975.

Não há propriamente um Museu da Neve de 75, ou um ’75 Snow Memorial, mas toda banca de revistas (que lá se chama revistaria) tem uma pilha de cartões postais mostrando a Praça Tiradentes coberta de flocos brancos. Deviam estar na lista do Guinness como os cartões postais mais reimpressos do planeta.

A neve de 1975 foi para Curitiba o que o encontro com Janis Joplin foi para Serguei: aquele momento fugidio que justifica uma vida. Todo curitibano terá algo épico para contar daquele evento memorável.

Tomada de Constantinopla? bah!
Queda da Bastilha? buh!
Invasão da Normandia? bleah!
Neve de 1975? Ahhh!

Daqui a 10 mil anos, durante a próxima Era do Gelo, ainda haverá revistarias vendendo cartões postais com as araucárias nevadas da Praça Tiradentes.

Por fim (e para não atrasar ainda mais a leitura do sensacional glossário elaborado pelo Solan Valente), há os curitibanos e os curitibocas.

Os curitibanos são os nascidos em Curitiba. Os curitibocas são os piá e as guria que acham que ganharam a megassena acumulada por tomar gasosa, fingir não reparar no Oil Man ou no INRI Cristo, aplaudir de pé tudo quanto é peça de teatro, ir de salto alto e enganchar o pé na Ópera de Arame, chupar mimosa, abrir o porta-malas do carro e botar o som no volume máximo no Barigui e fugir do contato visual como todo curitibano que se preza foge de Curitiba no Carnaval.

(Esse texto cheio de maledicências é uma singela homenagem à Adriana, à Denise, à Amarilis, à Sandra, à Claudine, à Luciana, à Antonia, à Rosana e ao Luiz, ao Leopoldo, ao João Augusto, ao Guimarães, à Yara, ao Damasceno, à Claudia, à Mauriane, ao Paulo, à Cleima, à Aline, ao André e a todos os curitibanos – e curitibocas – que porventura tenha esquecido de mencionar, assim, no improviso).
Adriana Zadrozny”

*MANUAL DE GÍRIA CURITIBANA*

*TIRE AQUI SUAS DÚVIDAS *

ADEVOGADO: pessoa formada em direito e aprovada no exame da ordem

ALIMENTADOR: ônibus laranja que faz terminal-bairro, demora em média 78 minutos pra vir e anda no tempo dele

APURE: apresse, como no exemplo “o uber chegou, apure piá” (ver “piá”)

ARANHA MARROM: como chamamos qualquer espécie de aracnídeo. O veneno é capaz de derrubar 10 capivaras adultas segundo a minha vó

ARREGADO: pessoa sortuda ou porção generosa, “olhe que cachorro quente arregado com 3 vinas” (ver “vina”)

ATLETIBA: clássico do futebol que antecede uma semana de depressão

BANANA CATURRA: aquela mais barata cheia de pinta

BARIGUI: maior concentração de gente bonita e de capivaras do sul do mundo

BÉRA: é cerveja, piá tongo (ver “piá” e “tongo”)

BERMA: bermuda, artefato usado só no verão e olhe lá

BISCATE: mulher pegadora, aeroporto de pomba-gira, exemplo: “deu em cima do meu namorado aquela biscatinha”

BOCA MALDITA: fica ali na praça Osório; reza a lenda que foi um ponto de encontro de aposentados fofoqueiros sem nada melhor pra fazer

BOCÓ: pessoa boba ou inconveniente mas sem maldade, só bocó mesmo

BOLACHA: aqui a gente come bolacha, biscoito é de São Paulo pra cima

BORBOLETA 13: figura mitológica, mulher de voz inconfundível que vende sempre o último bilhete, mesmo no início do expediente

CANALETA: pista que deveria ser exclusiva pra ônibus mas onde circulam ciclistas, skatistas e turistas perdidos que não têm a puta ideia de como foram parar ali

CANCHA: quadra poliesportiva onde a piazada se quebra (ver “piá”)

CAPAZ: o mesmo que “sério?” mas com entonação que escrevendo não sei como explicar

CARRO DO SONHO: desde a fundação da cidade repete o mantra “olha aí freguesia é o carro do sonho que está passando é o sonho bem fresquinho sonhos de nata creme chocolate doce de leite e goiaba o sonho freguesia”

CETRA: o mesmo que estilingue, serve pra tacar mamoma na piazada da rua de cima. Piá de prédio não sabe do que se trata (ver “piá de prédio”)

CHAMPAGNAT: bairro fictício porque Bigorrilho ninguém merece

CHINCHA: conversa séria, como no exemplo “chamou o bocó na chincha”

CHINEQUE: pão doce com farofinha crocante por cima, nas variações farofa, creme, banana e goiaba

CHUNCHO: gambiarra ou improvisação feita igual o seu nariz

CIDADE: é como chamamos o centro da cidade, um lugar onde devemos ir arrumados segundo a minha vó

CONVENCIONAL: ônibus amarelo que faz centro-bairro. No centro entre pela porta da frente e respeite a fila caso tenha amor à vida

COXA BRANCA: torcedor do Coritiba, piazada que anda meio jururu ultimamente (ver “jururu”)

COZIDO: bêbado, como no exemplo “guria do céu, tomei um tubão no terminal ontem e fiquei muito cozida” (ver “tubão”)

CRENDIOSPAI: expressão de espanto tipo “Creeedo”, exemplo: “crendiospai 15 pila o quilo do pinhão” (ver “pinhão” e “pila”)

CUQUE: bolo seco e fofinho com uma farofinha crocante sensacional por cima, tem gostinho de infância

CURITIBOCA: reclamão para o qual nada nunca tá bom

DA HORA: legal ou interessante, “que da hora essa tua bota, guria!”

DAÍ: palavra coringa que pode ser colocada ao final de toda frase, independente do assunto daí

DE CARA: abismado ou muito puto, “fiquei de cara com aquela biscate, guria”

DE VARDE: à toa, sem nada pra fazer

DECERTO: talvez, exemplo “tava sozinha no bailão, decerto largou aquele jaguara” (ver “jaguara”)

DESCER: ato de ir ao litoral, como no exemplo “desce quando, piá?”

DJANHO: do diabo, chato, insuportável; pode ser um piá do djanho, um frio do djanho ou um cruzamento do djanho, por exemplo

DOLANGUE: mentira, fake new curitibana, o mesmo que migué. (ver “migué”)

ECOVILLE: outro bairro que inventaram porque Mossunguê não vende apartamento

ESTAÇÃO TUBO: ponto de ônibus em forma de tubo de vidro onde param ligeirinhos e biarticulados; só Deus sabe a quantidade de gente que cabe ali

EXPRESSO/BIARTICULADO: ônibus vermelho imenso com 1 ou 2 articulações que roda em canaleta exclusiva; quando faz curva rápida tem um efeito chicote lá no fundão que faz vc se sentir um peão de rodeio

FARNÉU: marmita ou aquela porção que a gente leva numa tapauér depois da festa (ai que horror)

FEIRA HIPPIE: feira de artesanato domingo de manhã no Largo da Ordem, provavelmente a maior concentração de curitibanos por m2 que vc verá

FIAMBRE: apresuntado com especiarias meio suspeitas. Fiambreria é onde vendem frios

FILHO DE CHOCADEIRA: criança com pais ausentes; os jaguaras sempre nos trinques e o piá todo remelento (ver “jaguara” e “piá”)

FRIACA: frio lazarento (ver “lazarento”)

GASOSA: qualquer refrigerante de sabor exótico, tipo framboesa ou sabe Deus mais o quê

GRALHA AZUL: ave metafísica símbolo da região que ninguém nunca viu mas sabe que existe em algum lugar do Olimpo

GURIA: mulher jovem (ou não). Normalmente vem com um adjetivo (guria do céu!) ou verbo no modo imperativo (apure, guria!)

IMPOSSÍVEL: arteiro, bagunceiro, “mas este piá tá impossível hoje, crendiospai”

INTERBAIRROS: ônibus verde que circula só nos bairros; o mais famoso é o Interbairros II, que tem sentido horário e anti-horário. Dica de sobrevivência: preste atenção e pegue o verdão do lado certo senão vai conhecer a cidade inteira

INTER 2: versão Ligeirinho do Interbairros II, diariamente desafia a lei da física que diz que 2 corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço – ocupam sim, tá bom?

JACU: pessoa caipira ou muito tímida. “Jacu do mato” é o jacu com dose extra de jacuzisse

JAGUARA: sem vergonha, cafajeste ou preguiçoso; pode se referir a pessoas ou animais, “mas olhe que gato jaguara, dorme o dia inteiro”

JAPONA: jaqueta grande com zíper sem a qual não haveria vida nesta cidade. A típica mãe curitibana não deixa o piá sair de casa sem ela

JURURU: ou borocoxô, pessoa amuada, cabisbaixa ou quieta num canto

LAGARTEAR: tomar sol, costume que garante a preservação da vida neste lugar durante o inverno

LARGAR OS BETS: quando a gente desiste de algo – de uma guria, da dieta ou simplesmente de esperar o maldito alimentador

LAZARENTO: forma genérica e até carinhosa de xingar, que vale pra amigos, inimigos, animais e fenômenos quaisquer. “que trânsito lazarento”; “gato lazarento, pegou meu bife”; “olhe que lazarento, fez churrasco e não convidou”

LEITE QUENTE: frase emblemática que identifica o sotaque curitibano por meio da pronúncia impecável da vogal E (nossa, emocionado aqui)

LIGEIRINHO: ônibus cinza que só para em estação tubo. O povo entra e sai pela mesma porta, então cada tubo é um duelo entre uma manada de búfalos e uma de rinocerontes

LINHA VERDE: é o trecho da BR116 que corta a cidade, foi toda repaginada, tá top, mas é melhor evitar (fica a dica)

LOQUE: pessoa doida, inconveniente ou pentelha. A forma correta de xingamento é “seu loque!”. “Tirar pra loque” significa fazer de besta

MALACO: piá meio loque com a barba cheia de cotoco e vestido igual um indigente

MIGUÉ: mentira ou enganação. Miguezeiro é o praticante de migués

MIMOSA: nome genérico pra mexirica, bergamota, poncã e tangerina – aqui é tudo mimosa daí

NO GALETO: fazer algo rapidamente, exemplo: “guria do céu, o expresso desceu no galeto e quase que pega o piá”

OILMAN: figura mitológica, homem que desfila de sunguinha, besuntado e empurrando uma bicicleta. Aja com naturalidade e não fique olhando igual um jacu do mato

ORDENADO: salário, exemplos: “gasta o ordenado todo com cachaça o lazarento”; “não é assim um ordenadão mas tá bom”

PALHA: coisa desinteressante ou chata, “aquela série nova da Netflix é palha, piá”

PÃO D’ÁGUA: tipo pão francês mas em formato de bundinha

PESCOÇO: pessoa enxerida. A forma mais comum de xingar é “ê pescoção!”. Pescocear é dar uma volta para obter informações

POLACO: pessoa de cabelo claro ou branquela, normalmente antecede os adjetivos “do djanho” ou “jaguara”

PENAL: estojo de lápis e caneta de uso escolar, mas que costuma abrigar bolacha mole, chiclete usado e brilho labial

PIÁ: como chamamos indivíduos do sexo masculino, sem limite de idade. Admite as variações piazinho, piazão e piazada, que é o plural

PIÁ DE PRÉDIO: pessoa mimada que não come coraçãozinho de frango e não sabe soltar raia (ver “raia”)

PILA: unidade monetária, exemplo: “quanto tá o chineque de banana piá? Tá 2 pila cada”

PINHÃO: semente da araucária que vc vai comer de maio a agosto mesmo sem gostar e cuja colheita fora de época pode lhe render uma condenação perpétua inafiançável

POSAR: escrita correta do verbo pousar, é dormir na casa de alguém

RAIA: pipa. Piá de prédio nunca soltou uma e jamais saberá o desespero quando a diaba desprende e voa para o infinito

RAPOSINHA: marsupial primo do gambá que a gente chama de raposa porque ninguém nunca descobriu o nome desse bicho

REFRESCADA: dizemos “deu uma refrescada” quando a temperatura está perto de zero grau

ROLLMOPS: peixe enrolado no picles e preso com palito, chega a dar medo

RUA DAS FLORES: é a rua XV de Novembro, corta o centro, é minha e mandei ladrilhar

SERRAÇÃO: neblina. Aqui temos o ditado “neblina que baixa, sol que racha”

SINALEIRO: sinal ou semáforo, onde verde é “venha”, amarelo é “apure” e vermelho é “será que dá tempo?”

SUBIR: retornar do litoral, exemplo: “aproveite e suba com o tio, piá”

TERMINAL: onde fazemos conexão sem pagar outra passagem. É uma terra sem lei onde só os mais fortes acham lugar pra sentar

TESÃO PIÁ: “que legal”, é tipo um mantra na terra das araucárias

TIGRADA: piazada arruaceira, melhor passar de largo e não fazer contato visual

TONGO: lerdo, burro ou ingênuo. Tongo véio é o tongo reincidente na tonguice

TORÓ: temporal, comum o ano inteiro, surge do nada e sempre quando vc esqueceu a sombrinha

TRINCHEIRA: túnel, promessa típica de políticos dolangueiros (ver “dolangue”)

TUBÃO: refrigerante com bebida alcoólica barata, drink típico servido numa garrafa pet, uma visão do inferno

VIA RÁPIDA: avenida com no mínimo 3 pistas, cuja regra é o inverso de uma autoestrada: veículos rápidos à direita, lerdos no meio e workshop de baliza à esquerda

VINA: não é o mesmo que salsicha, já que salsicha não existe. Cachorro quente bom leva sempre duas vinas

VOLTE-MEIA: com certa frequência, exemplo: “volte-meia essa biscatinha aparece aqui”

XAROPE: chato ou entediante, “guria do céu, este texto xarope não termina nunca”

Prova final sem consulta – decifre a vida frase: “Apure piá tongo que aquele alimentador do djanho tá vindo no galeto daí”

Solan Valente

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