O socialismo e o comunismo, vistos como estágios necessários de uma pretensa “evolução histórica” a partir da ditadura do proletariado, são soluções reativas ao liberalismo.
E essa tese inicial é bem fácil de comprovar por redução ao absurdo: não haveria socialismo nem comunismo se não existisse, antes, o liberalismo. Foi a consequência funesta das teorias liberais, o capitalismo selvagem e sem peias, que gerou os protestos das classes trabalhadoras, durante a Revolução Industrial (1750-1850), e inspiraram as obras dos socialistas dito utópicos e, depois, os escritos revolucionários de Marx e Engels, considerados os pais ideológicos do comunismo.
O liberalismo é a face econômica e pragmática da ideologia protestante que, a partir do movimento iluminista francês do século XVII, ousou contestar a influência da Igreja católica e disseminou o capitalismo burguês no continente europeu. O que foi o livre-exame da Bíblia por Lutero, Calvino e seus seguidores, transmitiu-se para ambientes sociais pós-iluministas através de Montesquieu, Locke, Hobbes e Rousseau, na política, e Adam Smith, David Ricardo e Stuart Mill, na economia.
A burguesia, que vencia desde a Revolução Francesa (1789) a luta por influência política, precisava de justificativas ideológicas para a plena atividade. Até hoje encontra intérpretes no mundo ocidental que só fizeram aperfeiçoar os argumentos metafísicos dos liberais.
Tais idéias plasmaram soluções engenhosas como “a mão invisível” de Adam Smith, espécie de deus infalível com sinal trocado e imanentista, que elegeria a razão e o egoísmo como os pressupostos básicos da natureza humana, sempre imutável e irredutível de acordo com o que pensavam. Tal entidade consignaria o poder do livre jogo do “mercado”, entidade demiúrgica e milagrosa, que se movimentaria de acordo com os interesses dos ricos e poderosos, e definiria os fins da luta darwinista pelo controle do poder nas sociedades. Afinal, “homem comendo homem” – eis o princípio da suprema felicidade liberal.
Eles dizem que amam Deus e o dinheiro, não necessariamente nessa ordem, tentando provar que o resto são meros “epifenômenos”. O deus dos liberais é, todavia, meramente declaratório (para “inglês ver”), sem poder de disciplinar o mercado e os interesses daqueles que pretendem enriquecer a qualquer custo. Aliás, seria prova das bênçãos de Deus o homem que atinge a prosperidade (segundo Calvino) e os desígnios divinos, na verdade, só fariam confirmar, na prática, a “predestinação” das teses liberais.
O mercado é, porém, uma entidade muito frágil: não pode suportar a interferência estatal, que é uma bofetada fiscal na liberdade burguesa, em seu desejo de prosperidade e lucro. O Estado teria de ser “mínimo” e não atrapalhar as atividades econômicas, apenas cuidando da administração da justiça, da segurança dos cidadãos e das instituições que protegessem a propriedade privada. Fora disso, a sua influência sempre representaria um perigo nefasto para a dinamização dos negócios e a universalização dos egoísmos individuais que gerariam, afinal, a competição e a riqueza das nações.
Contra esse estado de coisas, opuseram-se os defensores das ideologias socialistas e comunistas que, por seu turno, engendraram com o seu desenvolvimento a pior das contradições: com o objetivo de retirar da miséria os “menos capazes” (a maioria, as massas, a multidão) propunham o cancelamento da liberdade geral por uma ditadura do proletariado, como se essa facção, por ser majoritária em relação à minoria burguesa, detivesse o monopólio da verdade.
A evolução do pensamento socialista foi lenta e levou duzentos anos, da mesma maneira que a ideologia do irmão-gêmeo liberal. A princípio, os socialistas só investiam contra o poder absolutista da Igreja, grande proprietária de terras, argumentando, como os chamados “fisiocratas”, dentre eles Fourier, que a terra é de todos, inaugurando um princípio que hoje inspira todas as reformas agrárias.
Depois, Proudhon protestou contra a natureza da propriedade privada, argumentando que ela seria “um roubo” em seu início, ou seja, determinada pela lei dos mais fortes, desautorizando assim o mandonismo burguês, que dividia a sociedade de acordo com o poder financeiro e econômico dos barões da indústria e do comércio.
Vale dizer, na origem do socialismo e do comunismo existia um clamor legítimo em favor da justiça e da correção das distorções que sobrevinham nas sociedades burguesas, sustentadas pelos princípios liberais.
Karl Marx e Friedrich Engels levaram essa tendência ao paroxismo, denunciando a alienação do homem em relação aos frutos de seu trabalho (tese do jovem Marx), a exploração do homem pelo homem, que degenerava na escravidão individual e no colonialismo das nações fora do teatro europeu, e a “mais-valia”, conceito que explicaria as perversões da acumulação capitalista e da reprodução marginal de seus lucros, que conspirava sempre contra a sobrevivência dos trabalhadores.
Contrariando os filósofos de sua época, Marx afirmava, em pleno século XIX, que o que interessava não era interpretar o mundo e sim, transformá-lo, sonhando com a tomada do poder pelos proletários despossuídos através da violência. Tal violência, a expressão da natureza do homem social, seria uma espécie de altruísmo revolucionário necessário para destruir a falsa democracia burguesa, que só privilegiava as elites e concentrava nos latifundiários o domínio majoritário das terras.
As idéias de Marx e Engels não prosperaram, porém, nos países protestantes da Europa, que possuíam exércitos e instituições poderosas para sustentar o colonialismo e a própria expansão do capitalismo liberal, que se transformava celeremente em monopolista, ou seja, comandado por grandes empresas e projetado sobre múltiplas nações. Por ironia da história, tais idéias revolucionárias inspiraram países subdesenvolvidos ou arruinados por aristocracias decadentes, como a Rússia do início do século XX, que, no fundo, teimavam em não acolher os ideais da Revolução Francesa.
Quem conhece bem a complexa história do sindicalismo europeu sabe que correu muito sangue em torno da discussão do que os trabalhadores, que dormiam e pariam filhos junto às máquinas de produzir, poderiam receber em troca da exploração do capitalismo selvagem. Na verdade, se dependesse dos liberais, não só o Estado seria mínimo, uma espécie de mal necessário desde que lhes garantisse o poder, mas os direitos trabalhistas deveriam ser magros e desimportantes, vez que, caso estimulados, atrapalhariam a soberania dos negócios, os investimentos e a sagrada vontade de empreender da burguesia.
Uma espécie de socialismo “real”, ditatorial e truculento, instalou-se na Rússia, em 1917, através de Lênin e de seu partido bolchevique. O revolucionário russo, a princípio, foi financiado por capitalistas alemães, que preferiam exportar o agitador para fora do solo europeu ocidental. Mais tarde, foram também capitalistas europeus os financiadores dos regimes socialistas de direita, comandados por Hitler e Mussolini, e assim procederam por temer a influência do comunismo internacionalista que havia se instalado na União Soviética.
No espaço de 30 anos, os comunistas soviéticos varreram a aristocracia russa, assassinaram a família real e implantaram um regime de força tão brutal que gerou a ditadura de Yosef Stálin, líder soviético que coletivizou a agricultura e eliminou mais de 30 milhões de adversários, transformando-se num dos ditadores mais monstruosos da história. Entretanto, segundo o historiador inglês Robert Conquest, o ditador, chamado carinhosamente de “Koba” por seus seguidores, tomou para si um país puxado por arados e o deixou com pilhas atômicas…
No entanto, mesmo os crimes de Stálin, denunciados em 1953, não detiveram o fanatismo dos comunistas e a ideologia de expansão de sua doutrina através do mundo.
Outro historiador inglês, o socialista Eric Hobsbawn, por seu turno, cunhou até um famoso “paradoxo”: ele demonstrou que foi o exército soviético, na frente oriental, que destruiu o poder de Hitler e salvou a democracia liberal européia, em 1945, enquanto, quarenta anos mais tarde, a mesma democracia liberal européia destruiria enfim o exército vermelho (1992)!
A Guerra Fria (1945-1989) foi o período mais intenso de conflito entre o capitalismo liberal, europeu e norte-americano, e o mundo socialista, comandado pela União Soviética, decidindo o novo mapa de forças na Europa através do Tratado de Potsdam (1944). O medo do comunismo tornou-se o fantasma genérico que produziu, no Ocidente, o chamado Estado de Bem-Estar e o Plano Marshall (1948), duas providências que cuidavam de reconstruir a Europa no pós-guerra e concediam direitos importantes às classes trabalhadoras para que não fossem tentadas pelo sonho do comunismo, que, mesmo sendo violento e sanguinário, como sugeria a sua doutrina, espalhava-se pelo mundo como rastilho de pólvora.
Os sindicatos floresceram, os trabalhadores puderam ver suas lutas recompensadas por direitos trabalhistas e sociais e as empresas foram obrigadas a reduzir as jornadas de trabalho, melhorando o padrão de vida de classes antes vítimas da espoliação desenfreada do capital nos séculos precedentes. Tais conquistas foram paulatinamente exportadas também para países subdesenvolvidos, que se libertavam dos grilhões do colonialismo europeu, constituindo sociedades independentes que ansiavam pela conquista de menor coeficiente de desigualdade entre seus habitantes.
Enquanto os Estados Unidos, que se transformaram em superpotência após a 2ª Guerra Mundial, se debatiam internamente contra o comunismo e, no exterior, tentavam deter a expansão soviética, o capitalismo dos monopólios e oligopólios se agigantava, transformando empresas nacionais norte-americanas em grandes firmas multinacionais.
Nos anos 70, a partir dos esforços idealistas de Nélson Rockfeller e mais 200 capitalistas, foi constituído o movimento “Trilateral” (Estados Unidos, Europa e Japão), cujo objetivo era deter o poder da União Soviética, transformada em superpotência nuclear, e o poder dos sindicatos, dentro e fora dos Estados Unidos.
Finalmente, com a queda do muro de Berlim (1989) e a dissolução da própria União Soviética (em 1992), o capitalismo liberal sentiu a sensação de vitória e pôde fazer predominar a sua visão de mundo. O comunismo passou a ser expressão meramente regional e local, praticamente circunscrito a três países: China, Coréia do Norte e Cuba.
E o que fizeram os liberais vitoriosos? Com Reagan, Thatcher e Kohl (1982) passaram a cobrar as dívidas externas dos países periféricos e a reconstituir o poder das empresas já então globais, que se transformaram em polvos gigantescos. Cuidaram, ainda, de liquidar os pressupostos do Estado de Bem Estar instalado na Europa, porque concessões aos trabalhadores não eram mais necessárias, em razão de não haver mais um inimigo externo a combater.
Veio a Internet, a automação das empresas e da sociedade, passando as democracias ditas liberais a combater novo inimigo externo, desta vez corporificado no terrorismo islâmico. Sob o temor dos recentes adversários, os governos ocidentais, incorporando Estados extremamente equipados para a guerra, passaram a cancelar pouco a pouco os direitos individuais antes defendidos pelos ideólogos liberais. Paradoxalmente, são essas sociedades que, em defesa da sobrevivência e da administração de seus estados, estão projetando pelo caminho sociedades que estão esquecendo, em nome da segurança, os preceitos de liberdade e competição que procuravam proteger para pessoas e instituições.
E de tal modo que, neste início do século XXI, estamos assistindo, conforme antecipou o grande sociólogo russo, radicado nos Estados Unidos, Pitirim Sorokin, já falecido, a convergência contraditória das idéias liberais e comunistas dentro de uma só sociedade afluente, que é, ao mesmo tempo, exemplo e motivo de discórdia, os Estados Unidos da América. Do desdobramento do conflito interno dessa grande sociedade advirá, talvez, a solução para o porvir do mundo. E o destino natural de todos os filhos do liberalismo, designados aqui!
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