A desordem fundiária e a ausência do estado estão na raiz da criminalidade e da pobreza na Amazônia. Não há exemplo no mundo de região que tenha prosperado economicamente sem oferecer segurança jurídica e estabelecer com clareza o direito de propriedade.
Leonardo Coutinho, de Buritis, Rondônia
Na Amazônia, a lei é a da selva. Faltam Justiça e polícia, e os crimes são castigados em proporção ainda menor do que no resto do Brasil. O banditismo e a impunidade germinam sobre um caos fundiário sem paralelo no país. Apenas 4% das propriedades rurais da região estão legalizadas. Posseiros e grileiros controlam uma área equivalente a 18% do território nacional. A anarquia impera na zona rural em dois dos maiores municípios do país, situados no Pará. Os títulos de posse emitidos pelos cartórios de Altamira cobrem o dobro da superfície da cidade. Em São Félix do Xingu, abarcam o triplo de área do município. Como quase ninguém é dono do lugar onde vive, as disputas pelo solo costumam envolver tiroteios. Por isso, é não só onde mais se morre em razão de disputas agrárias como também onde mais ocorrem invasões de terra. Os crimes ambientais não chegam aos tribunais, porque não se sabe quem são os donos das áreas devastadas. Pelo mesmo motivo, não se pagam impostos e o trabalho escravo alastrou-se pela região. Na floresta, a impunidade estimula o tráfico de drogas, causando danos em outras regiões. Setenta por cento da cocaína que circula no Brasil ingressa no país pelas abandonadas fronteiras com a Colômbia, a Bolívia e o Peru. O cenário descrito acima constitui um enorme obstáculo ao desenvolvimento da Amazônia. A relação entre a instabilidade jurídica e o fraco desempenho econômico de muitos países pobres foi demonstrada pelo americano Douglass North, Nobel de Economia de 1993. North mostrou que uma das características marcantes das sociedades desenvolvidas é a existência de instituições fortes, que garantem o respeito à propriedade privada e aos contratos firmados e contemplam a justa punição dos infratores. Esses fatores são mais importantes na produção de riqueza do que a abundância de recursos naturais, terras férteis ou um clima favorável. Nesse sentido, a Amazônia leva aos extremos os problemas mais agudos da sociedade brasileira. “A ausência de instituições públicas confiáveis e uma sociedade civil muito frágil levam as pessoas a resolver os problemas na base das armas”, diz o filósofo Roberto Romano, da Universidade Estadual de Campinas. “A Amazônia, de certa forma, lembra a São Paulo do século XIX. Você só consegue resolver seus problemas se dispõe da ajuda de um poderoso local, e por isso passa a dever um favor. Quando é ofendido, para continuar respeitável, tem de defender sua honra de qualquer forma. Não há Judiciário para desestimular a vingança.” Para os narcotraficantes, a Amazônia é uma região de pouco risco e alto retorno. A Polícia Federal, responsável pela repressão ao comércio de entorpecentes, mantém um contingente diminuto na área. Tem mais agentes em Brasília do que nos vinte postos situados na Amazônia, com os quais fiscaliza 59% do território nacional. Até missões bem-sucedidas raramente redundam em prisões. Quando os policiais chegam a descobrir e destruir pistas de pouso usadas pelos traficantes, dificilmente alguém responde pelo crime, porque elas são construídas em verdadeiras fazendas cuja posse é contestada. Os cartéis da droga controlam municípios inteiros. Seu poder em Abaetetuba, no Pará, é tão conhecido que a cidade foi apelidada de “Medellín brasileira”, em referência a uma das sedes da máfia colombiana. Do Suriname vêm as embarcações com droga, o contrabando de armas, bebidas, cigarros e animais silvestres. A rota é conhecida, mas a Polícia Federal não tem gente nem disposição para fechá-la. O mesmo acontece em Nova Mamoré, em Rondônia. Um de seus distritos, Jacinópolis, de 10 000 habitantes, é um antro onde a polícia estadual não entra há mais de dez meses, porque os bandidos recebem os visitantes a bala.
Um terço das cidades brasileiras com maior índice de homicídios está na Amazônia, que tem o menor e menos equipado efetivo policial do país. Muitas localidades não contam com um único policial. O número de juízes, promotores e cartórios é insuficiente para fazer a Justiça funcionar. Os servidores locais do Judiciário são os mais sobrecarregados do Brasil. Para funcionarem a contento, as cortes locais deveriam ter seis vezes mais funcionários. “Muitos processos ficam parados não por falta de julgamento, mas porque não há gente para garantir que as decisões sejam cumpridas”, diz o juiz Luis Claudio Chaves, de Manacapuru. A situação é mais precária no interior. O juiz paraense Roberto Itzcovich foi obrigado a pedir transferência por duas vezes em seis anos porque deu seguimento a processos relacionados a conflitos de terra no Pará. Em 2001, sua casa em São Félix do Xingu foi invadida por bandidos, que exigiam o arquivamento das ações contra integrantes de grupos de extermínio. Três anos depois, a casa do juiz em Curionópolis foi alvejada por pistoleiros. Respondendo hoje pela vara de Barcarena, Roberto Itzcovich ficou por duas vezes na mira dos bandidos por julgar um tipo de delito que permanece impune na Amazônia: os assassinatos por encomenda.
As listas de marcados para morrer são conhecidas das autoridades, mas, até hoje, só vinte pessoas foram condenadas por esses homicídios no conflagrado sul do Pará. O maior número de casos desse tipo não chega sequer a ser investigado, embora seus autores sejam conhecidos. A polícia só recolhe provas contra eles quando o episódio é rumoroso, como foi o da freira americana Dorothy Stang, morta em 2005, em Anapu, no Pará, por defender agricultores sem-terra. O inquérito contra os algozes da religiosa foi concluído em um mês e um deles já cumpre 27 anos de prisão. Nos rincões, essa situação é agravada pela atuação de grupos armados. Os fazendeiros são aterrorizados no Amazonas, no Pará e em Rondônia pela violenta Liga dos Camponeses Pobres, que recebeu treinamento das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) e do peruano Sendero Luminoso. Às vezes acuados por grupos como esses, às vezes por sem-terra indefesos, os proprietários rurais costumam apelar a seus próprios meios para fazer o que consideram justiça. Os linchamentos são praticados regularmente no interior e mesmo nas metrópoles. No ano passado, foram registradas oitenta dessas ocorrências só na região metropolitana de Belém. A condescendência das autoridades com esses casos pode ser exemplificada pelo que aconteceu com Fábio Nazareno Macedo, de 32 anos, acusado de tentar violentar duas adolescentes. Os moradores de Marituba, conurbada à capital paraense, o despiram e o espancaram com pauladas até a morte. Depois de matá-lo, penduraram em seu pescoço um papelão em que se lia a palavra “estuprador” para infundir medo em candidatos a agressor. A polícia deixou o cadáver exposto por sete horas antes de recolhê-lo. Na realidade, a violência sexual contra crianças e adolescentes é endêmica na Amazônia. É comum que pais mantenham relações sexuais com as filhas e as vendam para a prostituição. Nos bordéis do Pará, há até sorteios de virgindade. “A pedofilia é corriqueira e resulta da degeneração moral de uma sociedade pobre, que foi constituída por imigrantes sem valores”, diz o bispo do Arquipélago de Marajó, José Luis Azcona.
A degradação de costumes se imiscuiu no cotidiano de uma população habituada a viver à margem da lei. Boa parte dela obtém seu sustento na ilegalidade. Muitos participam da exploração irregular de madeira sem saber que estão cometendo crime ou por falta de qualquer outro meio de vida. O mercado negro desse produto e a atuação dos bandoleiros, donos das empresas dedicadas ao comércio de toras, são incentivados pela escassez de terras legalizadas. Em uma terra em que falta lei para punir homicídios, as autoridades são ainda mais lenientes com os crimes ambientais. Em Rondônia, a população denunciou por oito anos a devastação das margens do Rio Jamari antes que a polícia aparecesse para tomar alguma providência. Uma vez lá, lavrou 400 autos de infração. Os desmatadores, entre eles empresários, políticos e mesmo policiais, continuaram desmatando. No fim de 2008, a área depredada era 30% maior que a que será inundada pela hidrelétrica de Santo Antônio, no Rio Madeira. As ONGs ambientalistas que lutam para impedir a construção da usina silenciaram sobre Jamari. Afinal, ganham visibilidade ao confrontar a União e as grandes empreiteiras. Quando se trata da elite local, o risco de vida é alto e o retorno de marketing, nulo.
O primeiro e o mais importante passo para civilizar a Amazônia é regularizar sua situação fundiária. Em junho, o governo tomou uma iniciativa digna de nota nesse sentido. Editou a Medida Provisória 458, que concede títulos de propriedade a imóveis que somam 670 000 quilômetros quadrados, o equivalente a 13% da Amazônia ou aos territórios de Minas Gerais e do Rio de Janeiro somados. Com a nova norma, o governo trará nada menos que 300 000 famílias para a legalidade. Hoje, essas pessoas já ocupam as terras que lhes serão transferidas, tiram delas seu sustento, mas não têm nenhuma responsabilidade pelo seu destino. Uma vez que detenham também os direitos de propriedade, não apenas garantirão a sobrevivência de sua família como também passarão a pagar impostos, ter direito a crédito, além de ser responsabilizadas por crimes e danos ambientais que forem cometidos em suas fazendas. Os mais pobres receberão as áreas gratuitamente. Os remediados as comprarão por valor simbólico. Os ricos poderão adquiri-las por um valor ligeiramente acima do de mercado. Quem o fizer será obrigado a reflorestar o que desmatou fora dos limites legais. Pode ser o início do resgate da floresta e de um processo civilizador que insira na Amazônia valores que vigoram no resto do país.
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