O lado sombrio da web

Clique para ampliarSites que vendem drogas, remédios controlados e contrabando estão onde o Google não chega e desafiam a lei com criptografia e meios anônimos de pagamento. INFO entrou no submundo da internet para mostrar como funciona o tráfico na chamada Deep Web

Em cinco meses, a trajetória do portal Atlantis já pode ser comparada à dos grandes sites de e-commerce. Desde seu lançamento, em 14 de março, o Atlantis registrou 600 mil dólares em vendas, com quase 2 mil itens listados em 26 categorias. Sua atuação tem alcance global, e a equipe técnica trabalha para garantir a estabilidade da página, apesar do aumento crescente no número de acessos. Um sistema automático de recomendações também está nos planos. O objetivo é dar aos usuários a melhor experiência de compra, seguindo a estratégia de grandes companhias do varejo online, como Amazon e eBay. Mas há uma diferença importante entre o novo portal e os grandes sites de comércio eletrônico. O Atlantis vende drogas ilegais.

A variedade de substâncias encontradas no site faz com que os cartéis internacionais de drogas pareçam coisa de amador. Cocaína escama de peixe, haxixe marroquino, mescalina, pastilhas de ecstasy no formato de granadas, estampas multicoloridas de LSD e maconha, muita maconha. Afinal, esse é o produto mais popular, com exóticas variedades da erva: neblina da amnésia, sativa havaiana, diesel azedo. O portal oferece também remédios controlados, revistas eróticas, documentos falsos, contrabando, livros sobre o cultivo de cogumelos alucinógenos e até uma inocente coleção do autor Dan Brown, de O Código Da Vinci. Bem-vindo ao submundo da internet.

“As pessoas amam a conveniência de comprar pela internet”, afirma Loera, um dos fundadores do site Atlantis, em entrevista a INFO. “Elas não precisam se encontrar com estranhos ou traficantes de rua, potencialmente perigosos. Também há uma garantia de qualidade da mercadoria, com o nosso sistema de avaliação feita pelos usuários. Os produtos são extremamente puros no Atlantis, o que é raro nas ruas.” Essa pureza a que se o fundador do Atlantis tem preço: 5 gramas de viúva branca, uma variação de maconha holandesa, custam o equivalente a 240 reais.

Não há como saber se Loera é homem ou mulher nem em que país vive. O nome é falso, e remete ao sobrenome de Joaquín “El Chapo” Guzmán Loera, chefe de um cartel mexicano de drogas chamado Sinaloa. O contato de Loera com a reportagem deu-se por meio de uma série de e-mails trocados ao longo de junho.

No fim do mês, depois que o marqueteiro do Atlantis, cujo salário é pago com a moeda virtual bitcoin, lançou uma peça publicitária no YouTube que repercutiu na imprensa internacional, a conversa passou a se dar por meio de um sistema de mensagens criptografadas. O vídeo de animação postado pelo Atlantis no YouTube conta a história de um personagem chamado Charlie, que viaja muito a trabalho e acaba sem drogas. Ele descobre o site, compra a droga e fica “alto como uma pipa”. O vídeo foi logo retirado do ar pelo YouTube.

Mesmo com o barulho causado pelo lançamento do serviço, os administradores do Atlantis não se mostram intimidados com a polícia. “Queremos atrair atenção e mais clientes. As forças da lei saberão da gente, e provavelmente já sabem, independentemente da maneira como divulgamos nosso produto”, disse outro fundador do portal, que preferiu não se identificar, numa entrevista coletiva a usuários do site Reddit.

“Decidimos investir tudo o que ganhamos para transformar o Atlantis no mercado número 1”, afirma Loera. Para alcançar esse objetivo, o Atlantis precisa bater seu maior concorrente, o Silk Road, atual líder no comércio eletrônico ilegal de drogas. Inaugurado em 2011, o site tem mais de 560 vendedores de drogas, de equipamentos de espionagem e de produtos de contrabando. O nome faz referência à rota da seda, que ligou o comércio do extremo oriente, do norte da África à Europa, no início da era cristã. Estima-se que a página tenha movimentado 22 milhões de dólares somente em 2012.

“O Silk Road mostrou que é possível manter ativo esse tipo de negócio ilícito”, disse a INFO Nicolas Christin, especialista em crimes cibernéticos e professor da Universidade Carnegie Mellon, dos Estados Unidos. “Quando outras pessoas viram que, depois de dois anos, as autoridades não conseguiram tirar o Silk Road do ar, surgiu a possibilidade de competir.”

Nicolas Christin coletou dados do Silk Road ao longo de vários meses, de 2011 a 2012, para um estudo acadêmico. De acordo com o levantamento, de 30 mil a 150 mil pessoas navegavam pelo site mensalmente até o fim do ano passado. Para garantir o anonimato de seus usuários, os administradores dos portais que vendem drogas investem em duas tecnologias principais.

O que é deep web – Para entender como funciona a deep web, pense na internet pela qual você navega todos os dias: uma malha de documentos e arquivos ligados por hiperlinks, acessados por browsers como Chrome, Firefox, Internet Explorer e Safari.

Muitas páginas web, no entanto, foram desenhadas de modo a não liberar o acesso vindo de uma conexão normal nem se deixar indexar pelo Google ou por outros mecanismos semelhantes de busca. Esse conjunto de páginas e documentos foi batizado de deep web, ou rede profunda.

Existem várias organizações que utilizam a estrutura da deep web de forma lícita. Universidades, por exemplo, podem usar a rede não indexada para limitar o acesso a artigos acadêmicos. Há ainda redes secretas disponíveis apenas para as agências governamentais. Mas existe também o lado sombrio e ilegal da rede profunda, representado por fóruns para a discussão de terrorismo, pedofilia, sexo bizarro, além dos mercados de drogas, como Silk Road e Atlantis.

Uma peça fundamental nessa estrutura é o Tor, porta de entrada para muitas dessas páginas. O sistema faz conexão com os sites escondidos usando uma rede intrincada de servidores. Rastrear a origem do acesso é quase impossível, o que garante o anonimato dos usuários.

A organização WikiLeaks também depende dessa rede para que seus colaboradores continuem anônimos. Todo o ciberativismo contra regimes opressores utiliza a deep web. “Qualquer comunicação sensível precisa se manter anônima”, diz Natalia Viana, jornalista brasileira que atuou no WikiLeaks.

De forma simplificada, essa é a diferença do acesso normal e o acesso pelo Tor - clique para ampliarDe forma simplificada, essa é a diferença do acesso normal e o acesso pelo Tor – clique para ampliar

1. Deepweb – A estrutura da rede profunda, um conjunto de páginas escondidas de navegadores comuns, como o Chrome, e dos robôs de indexação do Google, é a única maneira de acessar sites como o Silk Road e o Atlantis. O browser usado é o Tor (The Onion Router). Com esse navegador, as conexões da internet passam por uma rede labiríntica de servidores, arquitetada especialmente para frustrar tentativas de monitoramento. O Tor também é usado por ciberativistas e por qualquer um que queira navegar pela web sem ter sua identidade rastreada.2. Moedas criptográficas – Usadas para fazer as transações nos sites, moedas como bitcoin e litecoin não têm uma entidade central, como um banco, para controlar origem e destino. Os portadores dessas moedas criptográficas podem fazer compras de forma anônima, viabilizando as transações ilegais.”O fundador do Silk Road foi visionário, por reunir essas tecnologias em um único lugar”, diz a australiana Eileen Ormsby, dona do blog All Things Vice, especializado em deep web. Eileen refere-se ao Dread Pirate Roberts, criador do Silk Road, que usa o nome de um personagem do romance A Princesa Prometida, de William Goldman. “Havia mercados ilegais antes, mas nenhum tão acessível”, diz Eileen.

Dread Pirate Roberts escreve avisos, dá sua opinião na comunidade e atualiza o código do site. Pouco se sabe sobre ele, nem se há mais de uma pessoa por trás do apelido. Em sua assinatura no fórum do Silk Road, há links para duas leituras recomendadas: O Novo Manifesto Libertário, no site Anarchism.net, e uma versão em PDF do livro Por uma Nova Liberdade, do teórico libertário Murray N. Rothbard. “Ele é uma figura muito carismática, e pensa que faz parte de uma revolução”, diz Eileen. A reportagem da INFO entrou em contato com Dread Pirate Roberts pelo sistema de mensagens privadas do fórum, mas, em resposta, teve a conta banida.

Na estrutura de vendas, Silk Road e Atlantis lembram o site de leilões eBay. Nenhum deles faz venda direta ou mantém um estoque próprio. Eles oferecem plataformas para a distribuição anônima. Qualquer um pode anunciar seus produtos no site, desde que pague uma taxa de até 500 dólares. No Atlantis, o vendedor paga 50 dólares de taxa. “Os vendedores são muito leais o Silk Road e suspeitam do Atlantis”, afirma Eileen. Feita a compra pelos sites, os traficantes usam os serviços de correios para enviar a droga. Nessa etapa, não há criptografia que disfarce as substâncias ilegais do olfato de cães farejadores e dos scanners dos postos de inspeção.

Por isso, há um grande esforço desses portais ilegais para desenvolver técnicas de camuflagem para as drogas. No fórum do Silk Road, por exemplo, existe uma área exclusiva para a discussão do tema. Ali, aprende-se que nem a selagem a vácuo consegue evitar o vazamento de vapor das drogas depois de alguns dias. Usuários mais experientes recomendam embalagens de alumínio e filme PET, capazes de isolar gases por um bom tempo. Cartões alsos de Natal e de aniversário que acondicionam a droga completam o disfarce. Outros membros falam em utilizar, como destinatários, o nome de antigos moradores do endereço de entrega, para evitar que o comprador seja associado ao pacote a ser entregue.

Um usuário anônimo, que se diz funcionário do sistema americano de Correios, revela detalhes das inspeções. “Elas não acontecem todos os dias, a menos que haja um grande carregamento a caminho”, diz ele. “Já vi cartas oferecidas aos cachorros. Nunca vi cães farejarem a esteira, mas eles são sempre levados a carrinhos de encomendas internacionais.”

A reportagem da INFO falou com um vendedor de ecstasy e LSD de sucesso no Silk Road e no Atlantis. Ele pede que sua identidade não seja revelada, por razões óbvias, mas conta que mora na Austrália e fatura em torno de 20 mil dólares americanos por mês usando o site. O australiano afirma que nunca vendeu drogas nas ruas e que acaba de abandonar o emprego para se dedicar totalmente ao tráfico pela internet.

“Percebi que faria mais dinheiro com isso”, diz. “Estou muito satisfeito agora. Meus clientes estão felizes, e isso me faz sentir bem pelo que faço. Muitos dos meus amigos que vendiam nas ruas foram presos. Negociar pela internet é muito mais seguro”, afirma o vendedor. É para os Estados Unidos que vai quase metade do total das drogas vendidas no Silk Road, com 43,8% das encomendas, seguidos por Reino Unido (10,1%), Holanda (6,5%), Canadá (5,8%) e Alemanha (4,5%).

Há indícios de que pacotes comprados nessas páginas ilegais cheguem ao Brasil desde 2011. Um brasileiro escreveu, no fórum do Silk Road, estar com medo de realizar sua primeira compra. Outro usuá­rio responde em seguida: “Não me preocuparia se fosse você. Comprei DMT (uma droga psicodélica) da Holanda. Levou quase dois meses para chegar. Meu envelope foi entregue selado e intacto. Não precisei assinar nada, porque foi enviado como um cartão de aniversário.” A reportagem escreveu para mais de uma dezena de usuários brasileiros no fórum do Silk Road, mas nenhum concordou em dar entrevista.

No Brasil, os Correios não revelam estatísticas de apreensão, mas a empresa detalha o esquema de checagem que implantou para detectar esse tipo de enco­ menda. “Usamos equipamentos de raios X e espec­trômetros de massa”, diz a equipe de comunicação dos Correios, referindo­se a máquinas por onde passam as cartas, capazes de captar e identificar partículas de drogas ilegais. O sistema custou 209 milhões de reais.

A Polícia Federal investiga crimes na deep web desde o início de 2013. A divisão de crimes cibernéticos é a responsável e apoia outras unidades, como a de combate ao tráfico de drogas. “Essa é uma ati­vidade recente”, diz o delegado Carlos Eduardo Miguel Sobral. “Sabemos que há crimes pratica­ dos na rede não indexada, mas não há um buscador, como o Google, que nos ajude a acessar essas infor­ mações. Precisamos desenvolver outras técnicas.”

Na avaliação de Luciana Boiteux, coordenado­ ra do Grupo de Pesquisas em Política de Drogas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a chance de chegar a esse tipo de crime no Brasil é remota. “A grande dificuldade é a investigação”, diz Luciana. “A maioria das prisões por tráfico no país acontece em flagrante. Sites como o Silk Road invertem essa lógica.” Apenas com a investigação do processo de compra e entrega é possível identificar os infratores.

Um brasileiro que for pego por comprar drogas na internet pode ser enquadrado no Artigo 28 da Lei de Tóxicos, que prevê advertência, prestação de serviços à comunidade e medidas educativas. No caso de venda, o infrator cai no Artigo 33, que prevê até 15 anos de prisão.

Se investigar consumidores e traficantes já é um problema, fechar esses sites é ainda mais complicado. O anonimato, tanto na comunicação como nos meios de pagamento, praticamente bloqueia o acesso das autoridades. Mas existem algumas brechas, segun­ do o estudo de Nicolas Christin, da Carnegie Mellon.

Uma ideia seria acabar com o anonimato oferecido pelo bitcoin, obrigando usuários a associar suas moedas a uma identidade existente. O proble­ ma é que alguns dos sites, como o Atlantis, já utilizam outras moedas criptográficas alternativas.

Outra saída seria atacar diretamente os servidores desses e­commerces, direcionando vo­ lumes anormais de tráfego, em uma espécie de ataque hacker. Nos últimos meses, o Silk Road foi alvo desses golpes, que desestabilizaram a página, tirando­a do ar diversas vezes. Mas Dread Pirate Roberts foi capaz de contornar o problema.

“Ninguém sabe quem estava por trás desses ata­ ques”, diz Eileen Ormsby, do blog All Things Vice. Forças do governo americano e o próprio Atlantis foram acusados pelos usuários do Silk Road, apesar de o concorrente negar. “Nunca usamos essas táticas contra a competição, e nunca usaremos”, disse Loera, do Atlantis. “Admiramos tudo o que o Silk Road conquistou e lutamos a mesma batalha que eles.”

Apesar dos esforços da polícia e de agências de investigação, a tendência aponta para o surgimento de novos mercados anônimos e online, e não para a extinção dos que existem. Além do Atlantis e do Silk Road, há pelo menos quatro outros em operação: Sheep Market, Black Market Reloaded, Russian Anonymous Marketplace e Buy It Now. “Provavelmente esse vai se tornar um negócio multimilionário”, afirma Loera, do Atlantis. “Pensamos no longo prazo.”

Para o professor Nicolas Christin, o Silk Road só perderá a corrida se parar de inovar. “É uma questão tecnológica. Podemos ver uma disputa semelhante à do Facebook contra o MySpace. Vence quem tem as melhores ferramentas para o usuário”, afirma Christin. No começo de julho, Dread Pirate Roberts anunciou mudanças no código para melhorar o sistema de pagamento do Silk Road, em resposta às inovações da concorrência.

Esses sites que vendem todo tipo de droga ilegal mostram que existe um lado sombrio nos avanços tecnológicos voltados para a navegação anônima, que pode chegar ao crime organizado. “Vendedores de rua também compram nesses mercados virtuais, o que enfraquece o controle que as organizações criminosas têm sobre eles”, diz o traficante australiano entrevistado por INFO.

Para o engenheiro libanês Nadim Kobeissi, criador do software de bate-papo anônimo Cryptocat, o crescimento dos portais ilegais é um sintoma da evolução tecnológica e de como a sociedade se adapta a essa evolução. “Qualquer um pode usar um carro de forma que viole a lei e até transformá-lo em bomba”, diz Kobeissi. “Assim como carros podem ser usados para o bem e para o mal, a tecnologia de privacidade também pode. Não devemos permitir que nossos medos atrasem o progresso.” Mesmo que esse progresso esteja na venda de drogas ilegais? Essa discussão está só começando.

Esta matéria está na revista INFO de agosto. Assine INFO e receba todos os meses em sua casa uma edição com o que há mais quente na tecnologia.

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