A questão dos direitos humanos

“A própria expressão ‘direitos humanos’

tornou-se para todos os interessados

– vítimas, opressores e espectadores –

uma prova de idealismo fútil

ou de tonta e leviana hipocrisia.”

Hannah Arendt

Waldo Luís Viana*

No Brasil, a discussão sobre direitos humanos vem de longe e se mistura à lógica dos vitoriosos de plantão. A ditadura militar possuía visão específica sobre o tema, assim como hoje, em pleno regime democrático, surgem novas versões sobre o assunto, tentando-se impor de cima para baixo, através de medida provisória, um cipoal de artigos que ataca a própria essência de nossa já tão insultada Constituição.

A quantidade de mudanças degrada a própria qualidade das intenções, o que é profundamente antidialético e impróprio. Por elas, a democracia não se auto-explica, precisando ser reinterpretada à luz de manjados estratagemas de implantação de um futuro socialismo de Estado, anseio disfarçado que fica nas tortas entrelinhas do documento expedido pelo atual governo e que o presidente “assinou sem ler”…

Convocam-se movimentos sociais, sindicatos, conselhos para  tutelar os meios de comunicação,  a educação e saúde, as crenças religiosas e seus símbolos, além de estabelecer novas regras para questões como o aborto, a homossexualidade e a ascensão social de diversos grupos, antes excluídos. Enfim, um cancelamento da noção de representatividade do que estava instituído, como o Congresso Nacional e o Poder Judiciário, em nome de uma pretensiosa emergência de emancipação do chamado “povo organizado”.

Todos sabemos onde isso vai dar: quebra-se a legitimidade da harmonia entre os Poderes republicanos em nome de nova correlação de forças, sugerida como por encanto em torno das necessidades de um pretenso assembleísmo popular. Voltamos aos tempos de Lênin, em 1917: “todo o poder aos sovietes”…

Hannah Arendt, intelectual judia que experimentou o calvário de seu povo diante da abominação nazista, assinalava que, durante o século XIX, os direitos humanos eram invocados de maneira muito negligente para defender os indivíduos contra o poder crescente do Estado. Nas primeiras décadas do século XX, porém, essas noções  foram ainda mais solapadas pela inflação, o desemprego, as guerras civis e as migrações, formando um paiol de pólvora que o rastilho do nacionalismo exacerbado se encarregaria, mais tarde, de fazer explodir.

A desintegração dos impérios europeus, durante a 1ª Guerra Mundial, foi a antessala do surgimento de uma categoria de povos sem Estado, sem direito à residência e ao trabalho, condenados a viver em constante transgressão à lei. Arendt denunciava o abismo entre a teoria dos direitos humanos e sua aplicação para “os sem Estado”, seres sem comunidade e “direito algum”, nem ao menos o direito de asilo, comum até no mundo antigo.

Sem comunidade – enfatizava a autora – o homem deixaria de ser homem e é nesse sentido que poderíamos entender a existência dos gulags soviéticos e campos de concentração nazistas, que apareceram em anos posteriores: seu objetivo era desenraizar os prisioneiros da cidadania, profissão, opinião, bem como da simples possibilidade de agir no mundo!

Para Arendt, a noção de igualdade não seria um dado natural, mas uma conquista da organização social. Não nascemos iguais,  tornamo-nos iguais, como membros de um grupo, por força da decisão de garantir direitos recíprocos. Nesse sentido, não poderia haver individualidade privada sem cidadania pública. Esse seria o cerne da manutenção desses direitos em países democráticos, em contraposição aos regimes totalitários.

A necessidade de se criar um estatuto dos direitos humanos, que fosse universal, decorreu, entretanto, do impacto das atrocidades nazistas. Era uma forma de superar a soberania estatal, que adoeceu toda a Europa, ensejando, após o término da 2ª Guerra Mundial, um novo cenário de expansão econômica do capitalismo monopolista e do chamado Welfare State (o Estado de Bem-Estar) no Ocidente.  Finalmente, foi assinada em Paris, em 1948, uma Declaração Universal dos Direitos Humanos…

Por sua vez, em 1951, Norberto Bobbio, escritor e jurista italiano, compreendia esse tema sob três prismas: eram direitos históricos e naturais, que nasciam em conjunto com uma concepção individualista da sociedade e que indicavam um progresso moral da humanidade.

Apesar dos problemas aflitivos da sociedade contemporânea, como a degradação do meio ambiente e o destrutivo poder dos armamentos, Bobbio acreditava que os diretos humanos eram uma conquista emancipatória, que fazia contraste entre as demandas variadas dos cidadãos por liberdade e a terrível tutela do Estado sobre os indivíduos.

Com isso, foram considerados atos extremamente negativos a escravidão, a tortura e a pena de morte, que, em última análise, mostrariam a contradição profunda entre o estado despótico e o estado de direito.

Ensinava o autor que falar de direitos é uma coisa, mas garanti-los, outra, completamente diferente, porque as liberdades individuais  são mais difíceis de proteger que os chamados “direitos sociais”, cujo alcance iria depender do raio de ação concedido aos cidadãos.

Argumentava Bobbio que direito e dever são como o verso e o anverso de uma mesma moeda e que a lei seria tradicionalmente olhada pelo lado dos deveres, o que o levava a considerá-la como função primária do dever e não como submissão verdadeira e sincera ao direito.

Os direitos humanos seriam, então, um sinal de reconhecimento das necessidades dos iguais, um mecanismo básico e regulador da democracia. O individualismo, sendo a base filosófica do regime democrático (cada cabeça, um voto) daria às pessoas o poder de tomar decisões, tornando o estado de direito um “Estado de Cidadãos”, em que o indivíduo possuiria não só direitos privados, mas também direitos públicos.

Assim, podemos entender que a questão dos direitos humanos, por ser complexa, não depende apenas de interesses privados dos vitoriosos de ocasião, provisoriamente aboletados no controle da máquina estatal. Aliás, a ideia de “desprivatizar” o Estado brasileiro, tornando-o realmente um agente público e não representante de pactos oligárquicos, patrimonialistas e atrasados – tal seria o contorno ideal previsto por Arendt e Bobbio em suas reflexões para a verdadeira vitória dos direitos humanos.

Só existem, portanto, tais direitos, de fato, quando o interesse público é garantido, estabelecendo-se regras claras entre classes, grupos e indivíduos. Para tanto, devem ser mobilizadas a opinião pública e o ordenamento institucional para que os conflitos, ao contrário da ordem totalitária, apareçam aos olhos de todos e possam ser objeto de consenso.

Quando o atual governo pretende aparelhar o Estado, através de medidas provisórias, com o objetivo aparente de conceder direitos, então cria súditos e não verdadeiros cidadãos. E, para quem conhece bem a História, mesmo a que se repete como farsa ou tragédia, o passo seguinte poderia ser a perda das liberdades dos brasileiros e a implantação de uma tirania, medrosa a princípio, mas escancarada e violenta, depois…

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*Waldo Luís Viana é escritor, economista, poeta e já viu esse filme…

Teresópolis, 25 de abril de 2010.

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