A tecnologia que não veio

Revendo revistas antigas encontrei em O Cruzeiro um texto muito interessante publicado por Mário Soares em 1º de agosto de 1964, intitulado “Na base do ano 2000”, cheio de esperança de um futuro cheio de tecnologia no qual a saúde seria mera mercadoria e a morte poderia ser adiada indefinidamente e praticamente todos os órgãos do corpo humano estariam a venda em lojas comerciais, mas passamos do ano 2000 e as previsões do cronista não se concretizaram por completo, conforme previsto na crônica que você pode ler abaixo:

Na base do ano 2000

Passo por um cinema e o nome do filme, que fala em mercado de corações, lembra-me um outro, que vi há muito tempo, e que, com este, tenho a certeza, não tem nenhuma relação.

Mais de vinte anos são passados, desde a sua exibição. Mostrava, creio, o século vinte e um. Época em que o pobre mortal, padecente de muitos males, poderia trocar, a seu bel-prazer, as peças gastas e enferrujadas do seu humano organismo. Lembro-me de um sujeito, americano alto e avermelhado, ue ia à procura de excelente coração, que o seu já estava pifado. E da velhota que buscava um figado novo em folha, para substituir o antigo. gasto pelo uso, procurando, entre vários, o mais adequado ao seu tipo

Leio os jornais e revistas deste presente sessenta e quatro. E neles encontro muita realidade que não está longe daquela ficção. No Japão trocam o rim doente de um enfermo por igual órgão sei lá de que animal. Num país, dos subdesenvolvidos, colocam outro braço num acidentado. Coração artificial não é mais novidade. E nós mesmos, aqui no Brasil, temos um conterrâneo, que até reportagem mereceu nesta revista, que anda por Minas carregando seu transistor no peito.

Solto as rédeas da imaginação e vejo um supermercado, onde não faltam desde os melhores dedões do pé a bem refinados cérebros. E imagino algumas cenas. A pobre e desiludida mocinha, que recém levara um fora do namorado, sentindo destrocado o coração, junto ao balcão correspondente:

– A senhorita não teria, por aí, um coração para moça de dezenove anos? Daqueles que não estão sujeitos a paixonites?

Vejo Mané Garrincha, meio encabulado, escondendo-se dos fãs, a procurar, numa ilha, um novo e sem problemas joelhocdireito. E a manchete, no dia seguinte, nas páginas esportivas:

«Garrincha estreou joelho novo».

Certos cronistas, de imaginação desgastada, a procurar afobados:

– Não terá aí um cérebro bem moderno, daqueles cheios de ideias? Mas, por favor, eu tenho pressa! Preciso usá-lo ainda hoje, quando for escrever o meu artigo.

A velhota, que acabara de sair invejosa de uma roda de twist, a indagar interessada:

– Já chegou a nova partida de juntas? Estou louca para trocar as minhas.

Chego a ver o Leônidas, de molejo novo, a pedir vaga no selecionado brasileiro, afirmando convicto:

– E agora, Feola, o que o Vavá tem que eu não tenho?

Como seria a bossa nova? Broto de quinze, para ter mais experiência, usando coração de trinta? ou balzaquiana voltando às suas dezoito primaveras, graças à rápida mudança na butique da esquina?

A inflação, por certo, influiria no preço dos artigos. E seriam naturais diálogos como este:

– Você viu como subiu o preço do estômago? E a vesícula? Anda pela hora da morte.

– E, olha, já não se fazem mais narizes como os de antigamente.

Ou este:

– Como você cresceu, Eduardo!

– Cresci nada, Roberto. Mudei foi de pernas. Comprei estas altas, bem mais elegantes do que as antigas.

O mal é que os rapazes iriam ficar na dúvida. A guria, que passasse teriam forçosamente que perguntar:

– É mesmo modelo 1950, ou passou por reforma?

Até o final dos anos 1990 e começo dos anos 2000, algumas dessas previsões ou visões se concretizaram, como por exemplo as próteses articulares, apesar de não substituírem perfeitamente a articulação natural devido a limitações mecânicas e estruturais, mas permitem uma vida “quase normal” aos usuários.

Neste mesmo ano 2000 surgiram os primeiros resultados do projeto genoma humano que se propunha mapear e decifar todo o código genético, gene-a-gene, do ser humano e cujo representante brasileiro era o médico Salmo Raquini, geneticista e doutor em genética pela Universidade Federal do Paraná. Após alguns anos, mais alguns bilhões de dólares gastos e com 97% do genoma humano decifrado, os pesquisadores começaram a se perguntar qual a utilidade de todo aquele trabalho colossal.

A encruzilhada foi tão intransponível que o Dr. Salmo Rasquini publicou, em 2010, um artigo intitulado: O genoma humano e a revolução que não veio.

Todos os dias aparece na televisão ou na Internet, propagandas de drogas, alimentos, métodos ou equipamentos que prometem milagres absurdos, e também são divulgados resultados de estudos clínicos  sugerindo que comer ou beber tal coisa, tomar tal droga ou fazer determinada atividade aumenta o tempo de vida e melhora a saúde, mas que não passam, tanto as propagandas, quanto as supostas pesquisas, de embustes para arrancar dinheiro ou enganar trouxas. Muitos resultados de pesquisas são lançados na mídia e na Internet de forma pouco confiável com o único fito de catapultar as carreiras dos pesquisadores neles envolvidos.

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