Proteína de Bence-Jones é uma cadeia leve de imunoglobulinas policlonais sintetizada por um clone de plasmócito normalmente maligno, das seguintes formas: 1-produção de cadeias leves apenas, ou 2-síntese anômala que leva à produção e secreção de moléculas intactas de imunoglobulinas e excesso de cadeias leves.
Em 1845, o Patologista BENCE JONES descreveu a proteína na urina de um paciente que hoje se sabe, padecia de MIELOMA MÚLTIPLO. A substância encontrada na urina do mesmo apresentava a peculiaridade de precipitar quando aquecida à temperatura entre 45 e 60oC e de redissolver-se quando a temperatura subia acima dos 60o C e chegava à ebulição. Esta propriedade térmica constitui a base da PROVA DE CALOR DE BENCE-JONES e foi utilizada até o início dos anos 70.
Em 1963, SCHWARTZ e EDELMAN compararam os hidrolizados trípticos da cadeia leve de uma globulina de mieloma e a proteína de Bence-Jones de um mesmo paciente e perceberam que esta é constituída por cadeias leves que não haviam sido incorporadas na proteína homóloga do mieloma.
Estudos posteriores da seqüência de aminoácidos demonstrou que a Proteína de Bence-Jones é formada por aproximadamente 214 aminoácidos e possui a mesma estrutura das cadeias leves da imunoglobulina normal e que esta proteína pode ser uma cadeia leve kappa ou lambda.
Para a detecção da proteína de Bence-Jones tem sido empregada a precipitação pelo calor, por ácidos ou sais, eletroforese de proteínas e imunoeletroforese.
A prova de precipitação por calor de Bence-Jones consiste em aquecer a urina entre 45 e 60º C na qual se forma um precipitado, este se redissolvendo quando a urina é aquecida até ebulição e voltando a precipitar conforme a urina esfria. As provas que empregam ácidos, sais ou ambos como agentes precipitantes são as seguintes: 1-amostra de urina sobre HCl ou HNO3 concentrados; 2-ácidos sulfossalicílico; 3-ácido tricloroacético; 4-ácido tolussulfônico e 5-n-propanol à 16% e 37ºC. Em presença de proteínas de Bence-Jones, forma-se um precipitado.
A eletroforese e a imunoeletroforese são os métodos mais utilizados para a detecção da proteína, apesar de estar sendo proposto o método de imunofixação por ser mais sensível.
2-MÉTODOS DE REFERÊNCIA E DE ELEIÇÃO:
Para detecção da proteína monoclonal, a prova de calor de Bence-Jones aplica as propriedades térmicas peculiares à proteína. PUTMANM e cols. descobriram que o grau de precipitação depende da força iônica e da composição eletrostática da mistura de reação e do intervalo de pH. Para uma precipitação ótima é necessário um pH rigorosamente controlado e situado entre 4,6 e 5,4. A prova de calor é relativamente pouco sensível e não permite detectar a proteína em quantidades abaixo de 1,45g/l., além do mais, não é específica pois outras proteínas como a transferrina podem dar um resultado falso positivo.
Em urina normal, são encontradas cadeias leves livres heterogêneas em quantidades tão pequenas que não superam os 50mg/24 horas. Estas cadeias policlonais (kappa e lambda) possuem propriedades as mesmas térmicas da proteína de Bence-Jones. Os pacientes com doenças do tecido conectivo e outras desordens que produzem hipergamaglobulinemia policlonal apresentam um aumento na secreção de cadeias leves e sua urina pode dar um resultado falso-positivo com a prova de calor de Bence-Jones.
Todas as proteínas de Bence-Jones definidas imunologicamente não possuem as mesmas propriedades térmicas características. STONES e FRENKEL perceberam que apenas 6 em 18 amostras de urina de pacientes com enfermidades de cadeias leves apresentavam uma prova de calor positiva. DEEGAN descreveu que um paciente com enfermidade de cadeias leves perdia de 10 a 14g de proteínas em 24 horas e haviam dado resultados negativos em várias provas de calor. Consequentemente, devido a falta de sensibilidade e de especificidade destas provas, elas não devem ser empregadas para detecção da proteína de Bence-Jones.
Em uma revisão de provas de precipitação por ácidos ou sais, HOBBES observou que em 79 amostras que continham mais de 50mg de proteína de Bence-Jones por litro foram encontrados os seguintes resultados em porcentagens: 1-urina sobre HCl conc., 5%; 2-urina sobre HNO3 conc.: 15%; 2-3-2-3% de ácido sulfossalicílico: 6% e outros 18% de precipitação incompleta; 4-10% de ácido tricloroacético: 5%. A porcentagem dos fracassos obtidos com outras provas de precipitação menos efetivos, em 66 amostras de urina que continha mais de 150mg/l de proteína de Bence-Jones, oscilavam entre 31 e 52%.
A prova de tiras reativas para proteínas é inconsistente e a miúdo se encontram resultados negativos em presença de quantidades significativas de proteína de Bence-Jones. As proteínas totais na urina, incluindo a de Bence/Jones podem ser determinadas pelo método do biureto tão logo as mesmas sejam precipitadas com solução etanólica de ácido fosfotunguístico.
Este método para proteínas totais tem sido empregado em aproximadamente 165 estudos de eletroforese de proteínas por ano. Não se dispõe de informações acerca do número de amostras que continha proteína de Bence-Jones, todavia um número moderado de pacientes com mieloma foram diagnosticados. Durante um período de aproximadamente cinco anos não foi observado nenhum caso no qual a eletroforese de proteínas não tenha revelado a presença da proteína de Bence-Jones e o método do biureto modificado tenha falhado em sua detecção. Não se dispõe de dados acerca da porcentagem de falhas desta prova e segundo a opinião de muitos pesquisadores, o método do biureto parece ser muito eficiente.
Em resumo: nenhum dos métodos que incluem a precipitação por ácidos ou sais é totalmente eficaz na detecção da proteína de Bence-Jones na urina, portanto, não devem ser utilizados como provas de escolha em apuração de diagnósticos finais. O método das tiras reativas é inaceitável. Todavia, a análise de proteínas urinárias totais é o método mais prático para determinar quantitativamente a proteína de Bence-Jones, além do mais, dá resultados deveras úteis, uma vez que se tem estabelecido sua presença por eletroforese de proteínas séricas.
Os métodos de eleição para a detecção da proteína de Bence-Jones são a imunoeletroforese e a eletroforese. A eletroforese de proteínas urinárias totais em acetato de celulose ou em gel de agarose se constitui numa prova discriminatória apropriada. A amostra deve ser concentrada umas 50 vezes. A amostra preferida é uma alíquota de urina de 24 horas, porém, freqüentemente se obtém bons resultados com uma amostra de primeira urina da manhã. Basicamente, qualquer outro pico que não seja albumina pode ser uma proteína de Bence-Jones. Deve realizar-se uma imunoeletroforese com anti-soros anticadeias kappa e anticadeias lambda para descartar que o pico anormal se deva à transferrina, a quantidades aumentadas de cadeias livres policlonais ou a moléculas completas de imunoglobulinas excretadas em grandes quantidades devido a um transtorno glomerular. A presença da proteína de Bence-Jones usualmente produz um arco anormal de um dos tipos de cadeias leves.
No comércio podem ser encontrados dois tipos de anti-soros: contra cadeias leves fixadas e contra não-fixadas. Como anticorpos para o anti-soro contra cadeias leves se utiliza a molécula de imunoglobulina completa. Como anticorpo para cadeia não fixada se usa a proteína de Bence-Jones. Uma série de determinantes antigênicos ficam expostos somente quando a cadeia leve está livre e outra série determinantes estão expostos em forma indistinta quando a cadeia leve está fixada ou livre. Em conseqüência, os anti-soros dirigidos contra as cadeias leves livres reagem somente com a proteína de Bence-Jones e com as cadeias não fixadas. Lamentavelmente, não se recomenda o anti-soro apenas contra cadeias livres para a determinação de rotina de proteína de Bence-Jones. Tem sido encontrados diversos subtipos destas proteínas com determinantes específicos e o anti-soro contra um subtipo pode reagir de forma diferente contra outros. O anti-soro comercial está usualmente preparado contra um, dois ou para alguns poucos tipos de proteínas de Bence-Jones. Em geral, é preferível um anti-soro preparado contra cadeias leves fixadas e livres de origem específica. A imunofixação tem sido recomendada como prova diagnóstica para proteína de Bence-Jones. WHICHER percebeu que a imunofixação é 10 vezes mais sensível que a eletroforese e pode detectar até 0,001g de proteína de Bence-Jones por litro de urina, se esta for concentrada até 200 vezes. Todavia é possível questionar a utilidade clínica de uma prova tão sensível.
A determinação quantitativa da proteína de Bence-Jones por métodos imunoquímicos não é efetiva devido à diferenças na reatividade dos diversos subtipos frente a anti-soros em particular. As proteínas totais em urina geralmente são determinadas por métodos químicos e usa-se a eletroforese de proteínas urinárias. Os métodos com ácido sulfossalicílico e ácido tricloroacético são empregados para a determinação de proteínas totais.
Em qualquer destes métodos o agente precipitante pode não reagir com uma proteína específica de Bence-Jones, de modo que a eletroforese de proteínas urinárias deve sempre acompanhar a prova química.
3-AMOSTRAS:
Para a determinação da proteína de Bence-Jones se utilizam amostras de soro e urina, de preferência no caso da urina, a de 24 horas, todavia, freqüentemente se tem obtido resultados satisfatórios com a primeira urina da manhã. As amostras de soro e de urina podem ser conservados por 5 a 7 dias à 4oC. A urina deve ser concentrada cerca de 50 vezes antes da eletroforese.
4-INTERVALO DE REFERÊCIA E INTERPRETAÇÃO.
No soro de pessoas aparentemente hígidas, são pequenas as quantidades de proteínas monoclonais. Estas pessoas podem desenvolver ou não um processo maligno de plasmócitos. A imunofixação pode detectar na urina destas pessoas as cadeias leves catabólicas provenientes destas proteínas monoclonais “benignas”. Este produto catabólico é uma cadeia leve monoclonal, porém não devida a um clone que sintetiza apenas cadeias leves ou mais cadeias leves que pesadas. DAMNACCO e WALDENSTRÖN demonstraram que em 42 pacientes com gamopatia monoclonal benigna, 23,8% tinham uma cadeia leve monoclonal em sua urina, sem contudo nunca exceder os 60mg/l.
Na realidade, o aumento do catabolismo de uma imunoglobulina sérica monoclonal também pode levar a excreção de cadeias leves monoclonais na urina. A eletroforese e a imunoeletroforese de proteínas detectaram estes produtos catabólicos. Geralmente, seus níveis são inferiores à 200mg/l ou a 300mg/l na 24 horas.
Consequentemente, se o nível da imunoglobulina monoclonal em soro é maior que 20g/l, não deve ser dado um diagnóstico de proteína de Bence-Jones, a menos que a concentração urinária seja maior que 200mg/l. Quando os níveis são inferiores a este valor, é impossível determinar se a cadeia leve livre é um produto catabólico ou uma síntese “de novo” de uma cadeia leve monoclonal.
A proteína de Bence-Jones está associada principalmente com o mieloma múltiplo; porém pode ser encontrada em pacientes com hiperglobulinemia de Waldenströn, Leucemia linfocítica crônica, amiloidose, carcinoma e uns poucos pacientes sem enfermidades aparentes.
O mieloma múltiplo é a mais comum das desordens com uma incidência de 3 para cada 100.000 habitantes e constitui-se num neoplasma maligno de plasmócito que afeta principalmente ossos e medula óssea. O diagnóstico pode ser estabelecido se for encontrado: 1-uma proteína monoclonal em soro (mais de 20g/l) ou cadeias leves em urina (mais de 60mg/24 horas); 2-mais de 10% de plasmócitos na medula e, 3-uma lesão lítica em ossos. Os critérios 2 e 3 não são constantes em presença de tumores de plasmócitos extra esqueléticos. Aproximadamente 1% dos casos de mieloma múltiplo são tumores não secretores e neles só aparecem os critérios 2 e 3. Para se definir o diagnóstico provavelmente sejam necessários várias biópsias de medula, já que esta pode estar afetada de forma localizada. Outros achados laboratoriais como anemia, hipercalcemia e níveis muito baixos de imunoglobulinas normais podem contribuir para o diagnóstico.
Os componentes M(monoclonais) encontrados em um mieloma geralmente são IgG, IgA ou cadeias livres de imunoglobulinas (proteínas de Bence-Jones). Ocasionalmente o componente M será IgD ou IgM ( maioria das IgM monoclonais estão associadas com a macroglobulinemia de WALDNSTRÖN) ou em alguns casos, IgE. Aproximadamente 20% dos mieloma secretam apenas cadeias leves livres (proteína de Bence-Jones). Quase 50% dos pacientes com mieloma apresentam imunoglobulinas monoclonais em soro e cadeias leves monoclonais na urina.
A presença ou ausência da proteína de Bence-Jones na urina depende da velocidade da síntese e quantidade de cadeias leves produzidas e do estado renal do paciente. A proteína de Bence-Jones marcada tem uma vida média de 4 horas em um indivíduo normal contra as 8 ou até 32 horas em pacientes com estado renal alterado. Em conseqüência, se o paciente tem uma função renal normal, a proteína de Bence-Jones será encontrada na eletroforese de proteínas em urina, porém, não no soro. No entanto, ao se deteriorar o estado renal, a proteína de Bence-Jones pode ser detectada no soro. Portanto, devem ser estudadas amostras de soro e de urina por eletroforese antes de se descartar a presença da proteína de Bence-Jones.
As proteínas M do soro e urina detectadas por eletroforese devem ser identificadas por imunoeletroforese ou por imunofixação. As amostras que contém uma cadeia leve monoclonal e não reagem com os anti-soros anticadeia pesadas específicas para IgG, IgM e IgA, devem ser encaradas como anti-soros contra IgD e IgE. A reação positiva de cadeias leves monoclonais que não reagem com os anti-soros específicos contra cadeias pesadas (IgG, IgM, IgA, IgD e IgE) são compatíveis com um mieloma de cadeias leves. A quantidade de proteína monoclonal presente está diretamente relacionada com o tamanho e a massa tumoral. A resposta ao tratamento e o tempo de sobrevida estão relacionados com uma combinação dos valores de hemoglobina e cálcio provenientes das lesões líticas a nível da proteína monoclonal no momento do diagnóstico. Os valores de creatinina sérica são empregados para a subclassificação (ou tipagem).
Comumente se emprega o sistema de graduação desenvolvido por DURIE e SALMON para mieloma múltiplo. O tratamento se desenvolverá por séries de determinações dos níveis da proteína M. Um paciente que apresenta uma diminuição de 50% na produção de proteína M pode considerar-se que, geralmente, tem uma redução de 50% da massa tumoral, enquanto a duplicação da síntese da proteína M reflete uma duplicação da massa tumoral. O critério do National Cancer Institute’s Myeloma Task Force (Grupo de Trabalho do Instituto Nacional do Câncer – USA) para uma resposta objetiva é a diminuição de 50% na concentração da proteína M no soro, ou na excreção de cadeias leves na urina de 24 horas. O Southwest Oncology Group (Grupo de Oncologia do Sudeste – USA) define como resposta objetiva a redução de 75% na produção de proteínas M séricas (níveis inferiores a 25g/l) e a diminuição de 90% na excreção urinária de cadeias leves monoclonais até níveis inferiores à 0,2g/24 horas. Estas respostas devem manter-se por pelo menos quatro semanas e devem estar acompanhadas por valores de cálcio sérico normais; valor de albumina sérica de aproximadamente 30g/l e nenhum progresso na enfermidade óssea. Os pacientes com uma redução entre 50 e 74% na produção de proteína M são considerados em evolução positiva (melhora). Em geral, os níveis de proteína M são determinados por eletroforese.
A proteinúria de Bence-Jones tem um efeito nefrotóxico e em conseqüência, aumenta o risco de disfunção renal. Os pacientes com mieloma que secretam apenas proteína de Bence-Jones em seu soro e urina tem o pior prognóstico. O mieloma de cadeias Lambda tem um prognóstico mais grave que o de cadeias Kappa.
A proteinúria de Bence-Jones nem sempre indica presença de uma enfermidade maligna. KYLEY e GREIPP acompanharam sete pacientes com proteinúria de Bence-Jones (mais de 1,0g/24 horas) durante 21 anos e não observaram evidências de processos malignos. Finalmente, cinco pacientes desenvolveram mieloma múltiplo entre o sétimo e o vigésimo primeiro ano. Entretanto, dois pacientes ainda apresentaram proteína benigna de Bence-Jones ao cabo de sete a doze anos.
5-REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
1-MONTEGOMERY, R. et Alli. Biochemistry. Iowa, USA: The Mosby Co., 1990. p.667
2-STRYER, L. Bioquímica. 3°ed. Rio: Guanabara-Koogan, 1992. p.734.
3-TODD, et alli. Diagnósticos Clínicos e Conduta Terapêutica por Exames Laboratoriais. 16° ed. São Paulo: Ed. Manole, 1989. p.734.
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