Os primórdios da Farmácia Atual

A vinda da Família Real portuguesa, juntamente com toda sua corte ao Brasil, covardemente refugiada após sua expulsão de Portugal pelas tropas de Napoleão Bonaparte, todavia, iria modificar este estado de coisas e eis que a 2 de abril de 1808 o Príncipe Regente D. João VI (filho de Da. Maria I-a Louca) nomeia JOAQUIM DA ROCHA MAZARÉM para o cargo de lente das cadeiras de anatomia e cirurgia do Hospital Militar (o lente daquelas épocas é o mesmo que o professor titular de hoje).

Como conseqüência, essas cadeiras de anatomia e cirurgia acabaram dando origem à Faculdade de Medicina, em 1832.

“A psycatura foi extincta em 1782, mas ressurgiu em 1809. Durante o periodo transitorio, foi o proto-medicato o supremo tribunal de saude publica. As habilitações exigidas aos que pretendiam obter o diploma de pharmaceutico, limitaram-se, primeiro, a simples noções theoricas colhidas n’um livro denominado EXAMES DE BOTICARIOS do padre Estevão de Villas, monge de Burgos, livro traduzido para portuguez em 1736; e depois na PHARMACOPÉA GERAL do dr. Tavares, e na pratica de alguns annos n’uma pharmacia. Emilio Fragoso in O ENSINO E EXERCÍCIO DA PHARMACIA EM PORTUGAL E OUTRAS NAÇÕES. Lisboa, 1878, pag. 1-2.”

Ao iniciar-se o século XIX, o Brasil, imenso e despovoado, permanecia sob a vigilância da Coroa Portuguesa. Era uma Colônia e como tal, sujeita às leis da Metrópole. O que acontecia em Portugal no século XVIII? Ouçamos a palavra autorizada de um historiador da medicina, em livro escrito em 1947: “O verdadeiro guia dos farmacêuticos portugueses durante a segunda metade do século XVIII e ainda parte do seguinte foi, porém, a Farmacopéia tubalense, de Manuel Rodrigues Coelho. É uma compilação de todas as farmacopéias e tratados de farmácia conhecidos até então, incluindo uma quantidade prodigiosa de fórmulas e informando com verdade sobre a origem e proveniência dos símplices. Apresenta, evidentemente, os defeitos da época: a tendência para a polifarmácia galênica e a inclusão de fórmulas empíricas, não raramente ridículas. Como havia charlatões entre a classe médica e os próprios médicos de maior categoria e saber não eram isentos desse pecado, assim acontecia na classe farmacêutica. Um dos que mais rapidamente e com mais proveito conquistaram Lisboa, foi Alberto Konig que, em 1724, se anunciou na Gazeta como oficial maior da botica imperial de Viena de Áustria, que viera a Lisboa para assistir, como provisor, à botica da rainha; e acrescentava que trazia consigo muitos segredos medicinais da augustíssima casa de Áustria para a rainha e sua família, e muitos símplices e medicinas úteis e frescas. Enfim, o desaforo do exercício ilegal da medicina e da venda de medicamentos chegou a ponto de se anunciar no mesmo ano, que quem quisesse um remédio eficaz contra “almorreimas, cursos de sangue e de dor de “cadeiras” se entendesse com Manuel Correia, ferrador, às portas de Santo Antão.”

Emílio Fragoso é mais explícito: “As habilitações exigidas aos que pretendiam obter o diploma de pharmaceutico, limitaram-se, a simples noções theóricas n’um livro denominado Exame de Boticários do padre Estevão de Villas…” e mais adiante, tratando dos exames, escreveu “que não passavam, em geral, de pretexto para lançar nas algibeiras dos delegados do famoso tribunal do proventos que ele próprio marcou no seu alvará de 1800.”

Quando as tropas do general Napoleão Bonaparte penetraram no território português, a família real transportou-se para o Brasil e o príncipe regente, aconselhado pelo doutor José Correia Picanço, houve por bem instruir na Colônia um curso Médico-Cirúrgico.

Em 18 de fevereiro de 1808, resolveu o príncipe regente criar uma Escola de Cirurgia na Bahia, que funcionaria no Real Hospital Militar, e, em 5 de novembro do mesmo ano a Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica no Rio de janeiro. Um laboratório farmacêutico foi estabelecido no hospital militar do Rio de Janeiro em 21 de maio de 1808, que seria, facultativamente, dirigido por um boticário, sendo nomeado Joaquim José Leite Carvalho. Em 12 de abril de 1809, ordenava o príncipe D. João que no hospital militar do Rio de Janeiro funcionasse a cadeira de matéria Médica e Farmacêutica, anexa à Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica e para lente da mesma, foi escolhido o doutor José Maria Bomtempo, médico da Real Câmara, debaixo de cujas ordens ficava o Laboratório Químico Prático, criado em 25 de janeiro de 1812.

Como não havia livros que tratassem dos assuntos relacionados com a sua cadeira, teve o doutor Bomtempo de escrever um especial, que denominou de “Compêndio de Matéria Médica”. Para isso, tomou “por modelo o trabalho do incansável doutor Tavares de eterna memória para os médicos portugueses”. São do prefácio estas palavras: “Quando o Príncipe Regente Nosso Senhor, por seu Real Decreto de doze de Abril de 1809, creou a Cadeira de Materia Medica, ordenou que ella fosse dirigida para complemento do curso cirúrgico já estabelecido; e que os seus fins fossem os de instruir os Cirurgiões do Exercito, e da Real Armada, nos princípios gerais desta ciência, que mais relações tivessem com as intenções facultativas.” Publicado na Régia Oficina Tipográfica do Rio de Janeiro, apareceu em 1814. Somente na terceira parte do livro é que se refere à Farmácia. Ia o doutor Bomtempo ensinar Farmácia aos futuros boticários? Os boticários estavam em plano secundário e o fim primordial da cadeira era instruir os cirurgiões do exército e da real armada. Por isso mesmo o ensino da Farmácia foi rudimentar e irregular. O doutor Manoel Luiz Alves de Carvalho, que Fernando Magalhães chamou de Manoel Luiz Álvares de Carvalho, nomeado diretor dos Estudos Médicos da Corte e Estados do Brasil, propôs um plano de estudos médicos e a 1º de abril de 1813 a Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do Rio de Janeiro ficou sendo a Academia Médico-Cirúrgica. O doutor Bomtempo continuava com a sua cadeira; mas Fernando Magalhães cita as denúncias da época, segundo as quais a situação da academia era precária, sem aulas de Medicina Prática, de Operações, de Matéria Médica, etc. Em 3 de outubro de 1832, foram criadas as Faculdades de Medicina do Rio de Janeiro e da Bahia, com um curso de Farmácia anexo. Somente em 6 de março de 1833 é que se reunia a primeira congregação de professores. Justamente nesse ano de 1833 é que se empossa na cátedra de Matéria Médica e Farmácia o doutor João José de Carvalho.

De mistura com Matéria Médica e Farmácia, ia o doutor Bomtempo, também, ministrando noções de química, naquele começo de organização científica do Brasil, quando os homens já se tinham esquecido dos exemplos admiráveis do administrador severo, que passou à história como “O onça”. (Governador Vahia Monteiro). Em 1948, escreveu o ilustre historiador Coriolano de Carvalho para o Primeiro Congresso Pan-americano de Farmácia:

“A farmácia científica teve início no Brasil, de modo irregular, no começo do século XIX e graças às transformações políticas da convulsionada Europa. O que havia sobre botica, vinha do obsoleto Regimento do Cirurgião Mór dos Exércitos, de 12 de dezembro de 1631, pois, até 17 de junho de 1782, quando foi instituída a Junta do Protomedicato, vigorava a Fisicatura, que ressurgiu em 1809 e ainda deu grandes desgostos à Regência, porque se encastelava nos famosos privilégios dos formados em Coimbra e com isto perturbava nossos meios escolares e levava a desmoralização aos institutos de ensino superior. Os candidatos tinham de praticar dois anos no Laboratório Químico de Lisboa, para serem matriculados no Dispensário, onde deviam trabalhar igual número de anos. Depois de praticarem quatro anos é que requeriam exame perante o lente de Matéria Médica, e, se aprovados, recebiam o título de Boticário Aprovado. Somente ao Boticário Aprovado era permitido possuir Botica.”

Impossibilitados de freqüentar o Laboratório Químico de Lisboa, tiveram o Laboratório Químico Prático do Rio de Janeiro, o lente de Matéria Médica, a Fisicatura e o Protomedicato, perante os quais eram submetidos a exames complacentes.

Mesmo depois de proclamada a Independência, os formados em Coimbra ainda reclamavam sua prioridade. Viviam da tradição e não se conformavam com os diplomas expedidos no Rio de Janeiro e na Bahia. Vejamos o que a respeito dos doutores de Coimbra escreveu M. Ferreira de Mira:

“Os graduados de Coimbra não se avantajavam, portanto, aos outros médicos que exerciam a sua profissão no país, senão no conhecimento dos antigos textos e nas minúcias e delicadezas da sua apreciação; e isso não teria grande influência na prática da arte de curar, nem a que tivesse seria facilmente reconhecida pela grande massa da população. Ao alcance desta ficavam, portanto, os médicos que tinham estudado em universidades estrangeiras ou que não tinham até seguido quaisquer cursos universitários e se habilitavam ao exercício da profissão clínica com um exame perante o Físico-Mor. Deve também supor-se que havia quem curasse sem carta de exame.”

Passava-se isto antes da reforma pombalina. Entretanto, não faltavam médicos competentes em Portugal e a Universidade de Coimbra sempre gozou de merecida fama, principalmente depois de 1772.

São de Alfredo Nascimento, abalizado historiador da Academia Nacional de Medicina, as referências que se seguem:

“A 26 de fevereiro desse mesmo ano de 1812, creou-se o cargo de Diretor dos estudos medicos e cirurgicos no Brasil, sendo nelle provido Manoel Luiz Alves de Carvalho, medico da real camara, por cuja iniciativa se reformavam, a 1º de abril de 1813, o curso desta capital, e, a 29 de dezembro de 1815, o da Bahia, dando-se-lhes maior desenvolvimento. Apezar disto, os diplomas conferidos não correspondiam aos obtidos em Coimbra; e, continuando insuficientes os que assim se diplomavam, prosseguiu-se na concessão de licença aos práticos que se habilitassem perante as autoridades sanitárias. Ora, estas eram outra vez representadas pelo Fisico-mór, restabelecidos por decreto de 27 de fevereiro de 1808 com a conseqüente extinção, a 7 de janeiro do ano seguinte, da Real Junta do Protomedicato. Para o primeiro cargo fôra nomeado Manoel Vieira da Silva, futuro Barão de Alvaizére, e para o segundo o mesmo José Corrêa Picanço, agraciado mais tarde com o título de Barão de Goyana.”

Fora do Brasil, falou-se na importância do boticário Francisco de Paula Pires ou Peres, pouco antes da Independência; mas nada foi encontrado, até agora, que justificasse a fama que lhe deram. Quanto ao boticário José Caetano de Barros que, segundo José Ramos Bandeira, fora discípulo do célebre Thomé Rodrigues Sobral, é fato incontestável que ensinou química em sua botica do Rio de Janeiro. Mas Oliveira Lima tinha absoluta razão, quando afirmava:

“O mais grave, era o lado espiritual, a forçosa elevação de um meio onde a ausência do sentimento de respeitabilidade cívica tinha determinado uma verdadeira anarquia moral.

O doutor José Francisco Xavier Sigaud, como presidente da Sociedade de Medicina, leu um trabalho na sessão de 25 de fevereiro de 1832, que denominou de Discurso Sobre o Estado Atual da Farmácia no Rio de Janeiro e que, em folheto, chegou até nossos dias. Encontramos o seguinte:

“O ensino da Farmacia na Capital do Imperio data da fundação da Academia Medico-Cirurgica. Não sei se existiu antes algum lente ou Professor regio incumbido de ensinar este ramo da ciencia medica. Cumpre dizer que foi na epoca desta fundação, que o ensino da Farmacia tomou uma ordem regular. Sem duvida seria curioso observar seus primeiros vestigios no berço, acompanha-los no seu desenvolvimento, mas, Graças a Deus, não sou o historiador, nem o Secretario, e nem mesmo o arquivista dessa Academia.”

Querem mais clareza? Seria possível admitir que um dos fundadores da Sociedade de Medicina de 1829, ignorasse a situação exata da Farmácia na Capital do Império? Estamos em face dos depoimentos precisos, que não podem ser alterados pela imaginação dos modernos historiadores. Por mais estranho que pareça, os trabalhos de pesquisas históricas e de restabelecimento dos valores de nossa Farmácia, que o Dr. J. Coriolano de Carvalho publicou, não convenceram as nossas elites de que a História exige provas e de que devemos edificar um monumento sólido para as novas gerações. Quem seria o primeiro professor da Farmácia no Rio de Janeiro, sobre o qual escreveram tantas lendas?

O primeiro professor de Farmácia no Rio de Janeiro chamava-se José Maria Bomtempo. Nasceu em Lisboa em 15 de agosto de 1774 e faleceu no Rio de Janeiro em 2 de janeiro de 1843 como brasileiro, porque adotou a Constituição do Império. Afamado historiador escreveu ao Dr. Coriolano de Carvalho, em certa ocasião, dizendo que os ossos de Bomtempo estavam numa urna de jacarandá no Convento da Ordem do Terço, à rua dos Passos. Qual não foi a decepção do ilustre historiador Dr. Carvalho, quando o Superior da Ordem me informou não ser exata a notícia, pelo motivo muito simples de Bomtempo não fazer parte da Ordem. Como esta, outras lendas correm pelo Brasil a respeito do nosso passado. Depois de muito rebuscar, constatou-se que Luís Vicente de Simoni, secretário geral da Academia Imperial de Medicina havia pronunciado um discurso no claustro sepulcral de São Francisco de Paula, quando do sepultamento de Bomtempo. Carvalho correu à igreja de São Francisco de Paula e mostraram-lhe o relatório da Venerável Ordem Terceira dos Missionários de São Francisco de Paula, de 1892 a 1897, apresentado pelo irmão corretor Visconde de Duprat. Lá, estava a verdade. Bomtempo, como irmão, fora enterrado nas catacumbas da Igreja de São Francisco de Paula, de onde, mais tarde, foi trasladado para o cemitério de São Francisco de Paula. Infelizmente, só depois do Congresso Farmacêutico de La Habana é que Carvalho descobriu o erro cometido.

Bomtempo nada tinha de boticário. Formado em Coimbra, foi nomeado Físico-Mor em Angola e Juiz Comissário do Protomedicato até 1808. Médico da Real Câmara, fidalgo da Casa Real e titular da Academia Imperial de Medicina, lente de Matéria Médica e Farmácia, seu elogio fúnebre foi feito pelo doutor José Mariano de Noronha Feital. Segundo o depoimento pessoal do doutor Alfredo Nascimento, a esposa do doutor Bomtempo chamava-se Rosa Maria da Silveira Bomtempo. O médico ilustre, que exerceu tanta influência no começo do século XIX, publicou os seguintes trabalhos:

  1. Compêndios de Matéria Médica. Rio de Janeiro, 1814.
  2. Esboço de um sistema de medicina prática.
  3. Exposição ao respeitável público.
  4. Memórias sobre algumas enfermidades do Rio de Janeiro.
  5. Trabalhos médicos oferecidos à Majestade do Senhor D. Pedro I, Imperador do Brasil.
  6. Regulamento interino para a fisicatura-mór do Império do Brasil.
  7. Plano interino para os exercícios da Academia Médico-Cirúrgica do Rio de Janeiro.

Mas, este médico de valor, autor do primeiro livro de Matéria Médica publicado no Brasil, não se preocupava com o futuro de nossa farmácia e por isso foi irregular e rudimentar. Nele predominou sempre a preocupação médica. O que se não justifica, porém, é a indiferença com que as elites farmacêuticas citam absurdos sobre o primeiro professor de Farmácia no Rio de Janeiro e nem procuraram conhecer o seu retrato.

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