Tumores pré-históricos colocam em debate o peso da vida moderna no câncer

8 de janeiro de 2011 | Autor:

Quando escavaram uma colina de sepultamento na região russa de Tuva, há aproximadamente dez anos, os arqueólogos literalmente encontraram ouro. Encurvados no chão de uma sala interna havia dois esqueletos, um homem e uma mulher, cercados por indumentárias reais de 27 séculos atrás: toucas e mantos adornados com imagens de ouro de cavalos, panteras e outros animais sagrados.

Mas para os paleopatologistas – estudiosos das doenças antigas -, o tesouro mais rico era a abundância de tumores em praticamente todos os ossos do corpo masculino. O diagnóstico: o caso de câncer na próstata mais antigo de que se tem notícia.

A próstata em si já havia se desintegrado há muito tempo. Porém, células malignas da glândula haviam migrado seguindo um padrão familiar, deixando cicatrizes identificáveis. Proteínas extraídas do osso testaram positivo para PSA (sigla em inglês para antígeno prostático específico).

Frequentemente considerado uma doença moderna, o câncer sempre esteve conosco. Onde os cientistas discordam é sobre o quanto ele foi amplificado pelos doces e amargos frutos da civilização. Ao longo das décadas, arqueólogos descobriram cerca de 200 casos possíveis de câncer datando de tempos pré-históricos. No entanto, considerando-se as dificuldades de extrair estatísticas de ossos antigos, isso significa pouco ou muito?

Um recente relatório de dois egiptólogos, publicado na revista “Nature Reviews: Cancer”, revisou a literatura, concluindo que existe uma “arrebatadora raridade de perversidades” em antigos restos mortais humanos.

“A raridade do câncer na antiguidade sugere que tais fatores se limitam a sociedades que são afetadas por questões da vida moderna, como o uso do tabaco e a poluição industrial”, escreveram os autores, A. Rosalie David, da Universidade de Manchester, e Michael R. Zimmerman, da Universidade Villanova. Também entram na lista obesidade, hábitos alimentares, práticas sexuais e reprodutivas, e outros fatores frequentemente alterados pela civilização.

Na internet, relatos da mídia fizeram a questão soar inequívoca: “O câncer é uma doença criada pelo homem”; “A cura para o câncer: viver como em nos velhos tempos”. Mesmo assim, muitos especialistas médicos e arqueólogos não ficaram tão impressionados.

Expectativa de vida

“Não existem razões para achar que o câncer é uma doença nova”, disse Robert A. Weinberg, um pesquisador de câncer do Instituto Whitehead de Pesquisa Biomédica, em Cambridge, Massachusetts, e autor do livro didático “A Biologia do Câncer”. “Em tempos passados, a doença era menos comum porque as pessoas acabavam morrendo cedo, por outros motivos”.

Outra consideração, segundo ele, é a revolução na tecnologia médica: “Hoje, nós diagnosticamos muitos cânceres – de mama e de próstata – que, em épocas passadas, teriam passado despercebidos e sido levados ao túmulo quando a pessoa morresse de outras causas, não relacionadas”.

Mesmo com tudo isso sendo contabilizado, existe um problema fundamental em estimar a ocorrência de câncer na antiguidade. Duzentos casos podem não parecer muito. Mas a escassez de evidências não é uma prova de escassez. Tumores podem permanecer ocultos dentro dos ossos, e aqueles que fazem seu caminho para fora podem fazer com que o osso se desintegre e desapareça. Mesmo com todos os esforços dos arqueólogos, somente uma fração da pilha de ossos humanos foi coletada, sendo impossível saber o que permanece escondido por baixo.

Anne L. Grauer, presidente da Associação de Paleopatologia e antropóloga da Universidade Loyola de Chicago, estima que existam cerca de 100 mil esqueletos nas coleções osteológicas do mundo todo, e uma grande maioria não foi examinada por raios-X ou estudada com técnicas mais modernas.

Segundo uma análise da Agência de Referência da População, o total acumulado de todos que viveram e morreram até o ano 1 d.C. já se aproximava de 50 bilhões, e havia quase dobrado em 1750 (essa análise refuta a comum afirmação de que haveria mais pessoas vivas hoje do que o total que já viveu na terra). Se essa conta se confirmar, o número de esqueletos no banco de dados arqueológico mal representaria um décimo milésimo de 1 por cento do total.

Nessa minúscula amostra, nem todos os restos mortais estão completos. “Por um bom tempo, os arqueólogos só coletaram crânios”, afirmou Heather J.H. Edgar, curadora de osteologia humana do Museu Maxwell de Antropologia da Universidade do Novo México. “Para a maioria, não há como saber o que o resto dos esqueletos poderia dizer sobre a saúde daquelas pessoas”.

Então como os cientistas podem avaliar, por exemplo, a importância dos poucos exemplos fossilizados de osteossarcoma, um raro câncer nos ossos que afeta principalmente pessoas jovens? O caso mais antigo foi provavelmente encontrado em 1932, pelo antropólogo Louis Leakey, num parente pré-histórico do homem. Hoje, a incidência anual de osteossarcoma entre jovens com menos de 20 anos é de aproximadamente cinco casos a cada 1 milhão de pessoas.

“Seria preciso examinar dez mil indivíduos para encontrar um caso”, disse Mel Greaves, professor de biologia celular no Instituto de Pesquisa do Câncer, na Inglaterra, e autor de “Cancer: The Evolutionary Legacy” (Câncer: O legado evolutivo, em tradução livre). Ainda não foi examinado um número suficiente de restos mortais adolescentes, disse ele, para chegar a uma conclusão significativa.

Existem mais complicações: mais de 99% dos casos de câncer se originam não nos ossos, mas em órgãos mais macios, que entram rapidamente em declínio. A menos que o câncer se espalhe para os ossos, ele provavelmente não será registrado.

Múmias

Teoricamente, as múmias antigas seriam uma exceção. Porém, também aqui as descobertas foram poucas.

Apenas em raras ocasiões os patologistas conseguem colocar as mãos numa múmia comparativamente recente, como Ferrante 1º de Aragon, rei de Nápoles, morto em 1494. Quando seu corpo foi autopsiado, cinco séculos depois, descobriram que um adenocarcinoma, que começa em tecidos glandulares, havia se espalhado aos músculos da bacia.

Um estudo molecular revelou um erro tipográfico num gene que regula a divisão celular – um G havia se tornado um A -, o que sugeria câncer colorretal. A causa, segundo os autores, poderia ser um consumo exagerado de carne vermelha.

Ao longo dos anos, centenas de múmias egípcias e sulamericanas geraram alguns outros casos. Um raro tumor, chamado rabdomiosarcoma, foi encontrado no rosto de uma criança chilena que viveu em algum ponto entre 300 e 600 d.C.

Zimmerman, coautor da recente revisão, descobriu um carcinoma retal numa múmia do período entre 200 e 400 d.C., e ele confirmou o diagnóstico com uma análise microscópica do tecido – a primeira, segundo ele, na paleopatologia egípcia.

“A verdade é que o número de múmias e esqueletos realmente antigos com evidências de câncer é insignificante”, explicou ele. “Simplesmente não conseguimos encontrar nada como a incidência moderna de câncer”.

Embora a expectativa de vida média fosse menor no Egito antigo do que atualmente, Zimmerman afirma que muitos indivíduos, especialmente os ricos, viviam tempo o bastante para contrair outras doenças degenerativas. Sendo assim, por que não o câncer?

Outros especialistas sugeriram que a maioria dos tumores teria sido destruída pelos invasivos rituais da mumificação egípcia. Porém, num estudo publicado em 1977, Zimmerman mostrou que era possível as evidências sobreviverem.

Em um experimento, ele coletou o fígado de um paciente moderno que havia sucumbido ao câncer metastático no cólon, o secou num forno e em seguida o reidratou – demonstrando, segundo ele, que “as características do câncer são bem preservadas pela mumificação, e que tumores mumificados ficam, na realidade, mais bem preservados que o tecido comum”.

Esqueletos

Quanto aos esqueletos, porém, o problema permanece: considerando-se o tamanho reduzido da amostra, exatamente quanto de câncer os cientistas deveriam esperar encontrar?

Para se ter uma ideia por alto, Tony Waldron, paleopatologista da University College London, analisou relatos de mortalidade humana de 1901 a 1905 – período recente o bastante para garantir registros razoavelmente bons, e antigo o bastante para evitar contaminar os dados com, por exemplo, o pico do câncer de pulmão nas últimas décadas devido à popularidade do cigarro.

Contabilizando variações na expectativa de vida e a probabilidade de diferentes males se espalharem aos ossos, ele estimou que, numa “montagem arqueológica”, o câncer poderia ser esperado em menos de 2% dos esqueletos masculinos, e entre 4 e 7% dos esqueletos femininos.

Andreas G. Nerlich e colegas, em Munique, testaram a previsão em 905 esqueletos de duas necrópoles egípcias da antiguidade. Com a ajuda de raios-X e exames de tomografia computadorizada, eles diagnosticaram cinco cânceres – número compatível com as expectativas de Waldron. E, conforme previam suas estatísticas, 13 cânceres foram encontrados em 2.547 restos mortais enterrados num ossário do sul da Alemanha entre 1400 e 1800 d.C.

Para ambos os grupos, segundo os autores, os tumores malignos “não apareceram numa quantidade significativamente menor que a esperada”, em comparação com a Inglaterra do início do século 20. Eles concluíram que “a atual elevação da frequência de tumores nas populações presentes está muito mais relacionada ao aumento da expectativa de vida do que a fatores básicos ambientais ou genéticos”.

Com tão pouco material para prosseguir, a arqueologia pode nunca obter uma resposta definitiva. “Podemos dizer que o câncer certamente existia, e provavelmente numa frequência menor do que a atual”, disse Arthur C. Aufderheide, professor emérito de patologia na Universidade de Minnesota e co-autor da Enciclopédia de Paleopatologia de Cambridge. Esse pode ser o máximo de certeza que jamais teremos.

Conforme os cientistas continuam investigando, pode haver algum consolo em saber que o câncer não é inteiramente culpa da civilização. No curso natural da vida, as células de uma criatura precisam estar constantemente se dividindo – milhões de vezes por segundo. Algumas vezes, algo sairá errado.

“Quando você cria complexos organismos multicelulares e permite que células individuais proliferem, o câncer se torna uma inevitabilidade”, disse Weinberg, do Instituto Whitehead. “Ele é simplesmente uma consequência da crescente entropia, crescente desordem”.

Ele não estava sendo fatalista. Ao longo das gerações, os corpos criaram barreiras formidáveis para manter células rebeldes na linha. Parar de fumar, perder peso, comer alimentos saudáveis e tomar outras medidas preventivas pode adiar o câncer por décadas. Até morrermos de outra coisa.

“Se vivêssemos por tempo suficiente”, observou Weinberg, “mais cedo ou mais tarde todos nós teríamos câncer”.

Por George Johnson
The New York Times
Transcrito do UOL Notícias

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